1.8.25

Tenho sítios para ir

Tenho sempre sítios para ir, por vezes vários ao mesmo tempo. Tem dias em que gostaria de estar em 3 países diferentes à mesma hora. 

Entendo perfeitamente a escolha de Deus. Podendo, eu também seria omnipresente.
Isto parece-me um estilo de vida perfeitamente normal, mesmo para uma mera mortal. Aliás, especialmente para uma mera mortal, com os dias contados. Com as horas a passar. Os minutos a fugir. 
Olho para o último ano, por exemplo, ano particularmente inútil, e fico feliz por todas as viagens e festas que vivi. Todas as gargalhadas e leviandade. 
Mas depois vejo aqueles livros de auto ajuda, - desta vez não vou ser irónica em relação a este tipo de literatura, das outras vezes, fui, tudo bem. Mas desta, não - e penso se eles não têm a sua razão. Do que é que eu estou a fugir?
E que festa deveria ter recusado para ficar em casa e fazer trabalho espiritual, aulas de pilates ou escrever textos com mais profundidade ?  E que pessoa seria se tivesse lido mais livros, tivesse feito mais meditação, tomado mais ayahuasca e menos ecstasy ? 
Gosto de pensar que há tempo para tudo e pessoas para algumas coisas. Já tive muitas vidas nesta vida. Já fiquei dias sem sair de casa a ler livro atrás de livro, e muito do que sou devo-o a esses livros, que só eu sei que não se aprende nada com festas e drogas. 
Mas a vida não é só aprender e melhorar. Por vezes, não queremos ser mais do que já somos e já estamos contentes com o que há e o que foi possível sermos.
Ser assim-assim assenta-me como uma luva. 
Peço desculpa a quem desiludi, as minhas intenções foram quase sempre boas.


Escrevemos semanalmente à volta do mesmo tema, à volta do mesmo dia :

Marisa Maurício
Joana Valente
Mariana Leite Braga
Maria João Caetano
Rita Maria 
Helena Araújo

31.7.25

Pandora

Este é um hino a pessoas tóxicas. Ao tóxico que nos rodeia e transgride. A situações que tiram de nós o que não sabíamos existir. Que gostávamos nunca ter de lembrar. O que queríamos nunca ter de confessar. todas aquelas sujas imperfeições que nos fazem fantasiar com uma máquina do tempo, para modificar a nossa Covardia. 
Tentação mil vezes cedida. 
Cólera desenfreada. 
Como seria perfeita a imagem de mim se nunca ninguém me tivesse apontado o dedo.
Contrariado.
Traído. 
Sem gatilhos, nunca nos vamos realmente conhecer. Sem os outros não somos realmente ninguém. Somos uma mera ideia-suposição do que poderiamos ser. Na maior parte muito romantizada. 
Oh, doce ilusão.
 
Até há uns anos atrás, sempre que lia ou via um filme ou simplesmente me lembrava do Holocausto, pensava em como seria se tivesse vivido nessa altura. A minha auto estima é infinita e não tinha dúvidas que estaria na linha de frente da luta contra aquela aberração. Seria Schindler, seria uma mulher da resistência, seria alguém que esconderia uma família judia na minha casa e os salvaria daquele absurdo. Agora, sei que não é assim. 
A caixa de Pandora mostra-me todos os dias, em permanência, razões para me indignar, levantar, sair da minha banal existência e lutar pelos meus ideais. 
Mas em vez disso, partilho de vez em quando uma story, assino petições, vou a algumas manifestações (poucas), faço umas pinturas e, de seguida como bolas de Berlim na praia. Sou uma covarde. 
Uma avestruz. 
Tenho vergonha do que sou. 
Com a caixa de Pandora fechada viveria num doce auto-conceito de ser uma humana digna e relevante. 
Agora, não.
Assim, sei quem sou. 


Todas as sextas-feiras o grupo de escrita 'Largo' publica textos sobre o mesmo tema:


18.7.25

Pôr o pé em ramo verde

Um ramo verde, um ramo novo, um ramo que ainda não se estreou, um ramo que ainda não viveu cinquenta anos, um ramo que não tem aquela experiência toda para saber o que é que vale a pena e o que é que já se sabe que vai ser só perda de tempo, perda de paz, perda de muita coisa, às vezes perda de tudo. Se estivermos com vontade de sermos rigorosos, é um ramo que é burro. Que não sabe porque não quer saber.

Um ramo que ainda se desculpa, porque não tinha como saber que ía ser um erro aquele caminho. Que já foi por vários atalhos, e já viu, porque caiu, porque fracturou um orgulho, uma dignidade, um dedo que adivinhou e não se quis ver, nesse mesmo maldito e esburacado caminho. 
Uma primeira vez. 
E se quando somos novos, tudo fácil, tudo é uma primeira vez, com o tempo, por exemplo, um valor aleatório, cinquenta anos depois, temos de ser curiosos, escarafunchar,continuar com vontade de experimentar, não termos receio de falhar, nem de perder esse tempo que cada vez sabemos melhor que é limitado e que vai acabar mais brevemente do que podemos aceitar, se não, como beberiamos todos os dias o mesmo café da manhã, Ser destemidos, livres e burros, até porque um erro nunca é sempre o mesmo erro e há erros tão, tão bons de se cometer. 
E com cinquenta anos ter muita vontade de errar melhor, errar diferente, conhecer novas músicas, novas rotinas, novas pessoas, novas vidas. Novos eus. Mas também errar na mesma, nos mesmos. Antigos eus. 
Ramos verdes e ramos ressequidos, colecciono-os. E em todos vou querer meter o pé.


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13.7.25

Terapia

Há 19 anos comecou uma tradição familiar de uma fora insuspeita, como deviam começar todas as tradições. Uma vez por ano passamos, a minha grande família e eu, uma semana no sul. Três gerações, a minha no meio, entre cuidar e ser cuidada. Não tenho jeito para nenhuma dessas funções, mas faço o que posso, como a grande maioria de nós. Nāo nos equeçamos disto.

Uma semana de auto conhecimento, na verdade. Dias intensos de confusão e calma. De entendimentos e conversas ao lado. De crenças e contra crenças. A família, esse grande pilar, essa gigante desconstrução. Essa maravilha da natureza, esse monstro da psicanálise.
Em 2025, como se tudo o mais não bastasse, decidimos não levar telemóveis. Ou vai ou racha. E foi. Por vezes, rachou. Férias como devem ter tido os meus amigos com famílias que iam para o sul ou para a  terrinha nos anos noventa. Férias normais que não tivemos em tempo normal. O que é normal? E temos agora e tudo me parece extraordinário. Os que gostam de cozinhar, os que gostam de comer e agora eu, que não quero nem cozinhar nem comer. Os que preferem a praia, ou que preferem a piscina e agora eu, que prefiro ficar à sombra a dormir ou a ler e a fotografar esta efémera passagem pelo sul, estas pessoas que também sou eu, estes corpos que nasceram entretanto, outros que cresceram, outros que envelheceram.
O tempo a passar com a pressa que lhe apetece e nós sem os écrans para nos distrair do que realmente precisamos ver.


Todas as sextas-feiras um grupo de escritoras publica um texto sobre o mesmo tema,  a hora é aleatória, a assiduidade é a possível. 


5.7.25

Salvação

Recomendo contenção homeopática com estas questões das salvações. Uma boa salvação, por norma, transforma-se numa próxima perdição. Não vislumbro uma excepção à regra, e caso o faça, será isso mesmo, a excepção.

Há uma frase muito verdadeira em que tropeço dia sim, dia sim "last night a DJ save my life", a música rende, a música eleva, a música salva.
Salva-me.
Lembro-me de estar muito perdida em noite de choro e desespero, quando as minhas crias eram bebés. Raramente tomava banho, dormir uma noite era uma miragem de contos de Sherazade, ler um livro era algo que nem me passava pela cabeça. A pessoa que era, tal como a tinha conhecido tinha morrido, tinha sido enterrada, o seu caixão profanado e ninguém lhe depositava flores no 1 de Novembro.. Estava cansada, vivia pela sobrevivência, não raciocinava, as alegrias da maternidade estavam lá, mas escondidas. Um primo meu, ao saber do meu estado em França, enviou-me uma música dos Vampire Weekend. Foi o início de um tratamento que me fez vir à tona, respirar e perceber que o sol ainda brilhava. Todos os dias enviava-me uma música nova. Quando vim a Portugal de férias, já era outra e fomos juntos a um concerto, talvez dos Alt J. Ele ainda não tinha sido pai e não compreendeu o meu efusivo discurso de gratidão.
Passaram-se anos e nunca mais deixei de procurar música nova que me salvasse a vida. mesmo quando estava salva. 
Bem sei que há música salvadora que já me acompanha desde os meus anos de adolescência, mas música nova que me toca profundamente é algo que me faz o sangue correr mais rápido, mais vivo, mais novo.
Depois veio a perdição. Talvez esta fórmula não se aplique a todos, nem todo o ser humano é obsessivo e compulsivo, ouvi dizer que há exemplares da nossa espécie mais equilibrados - não padeço desse mal. Tombo e caio, desiqulibro-me e oriento-me e assim vou avançando mais ou menos a par com o calendário. A minha paixão pela música já me tirou o sono, impediu de ir a encontros, não me deixou concentrar, atirou-me a vontade de pintar,  de escrever, para depois 
Há momentos em que não sei se sou uma mulher ou apenas os seus ouvidos. A música apoderou-se de mim. Sou toda eu música. Sou só música muitos dias. 
Parece bom. Mas isto também é um sinal S.O.S. no dancefloor, tenho dias que quero a minha vida de volta. 
Mentira. Ou talvez não.


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20.6.25

Caramelo

Toda a cidade tem a cor do caramelo. De um açúcar que já foi branco e novo. Ardeu. Queimou, em certos lugares, agora é caramelo. As raizes das árvores rasgaram os passeios. A areia cor de laranja aparece nos buracos das estradas. Os chapas, os inúmeros chapas, transporte informal, geram uma confusão desgraçada que tem a graça de estar viva e ser funcional, grita-se o nome das cidades ou das zonas das cidades onde vão acabar a viagem "Anjo Voador", "Xipamanine". Entopem o trânsito, acumulam-se pessoas nos passeios, gritaria, passos apressados, carros parados no meio das estradas. 

Subo as avenidas. A cidade parece parada no tempo, e eu ando às voltas com uma mapa em papel com cruzes a assinalar o meu percurso inicial. A clínica onde nasci, a casa da minha avó, dos meus pais, a piscina onde ia, o parque, a pastelaria da familia, a escola onde a minha mãe dava aulas, a igreja onde casou, a esplanada onde fiz uma cicatriz na mão. Essa cicatriz que me lembrava, de vez em quando, de onde eu vim. 
A cidade caramelo, como a maior parte das cidades aficanas que antes foram colonizadas, tem uma nova vida. Não é como as ruinas de Macchu Pichu, onde precisamos de muita imaginação para entender como foi. Nem como Cuba, que se manteve como era. Maputo é uma Lourenço Marques ocupada por quem não a quis e não faz para que continue na mesma. 
Parece-me demasiado grande para a quantidade de pessoas que vejo na rua. Estarão muitos apartamentos desocupados? Por vezes, sinto como se estivesse num cenário pós apocalíptico. Mas na atmosfera caramelo, estranhamente a maior parte das pessoas têm um sorriso oferecer, parecem calmos. Em paz. Doces. 
Caramelo.




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13.6.25

Não somos iguais

Não somos iguais.

No terceiro dia em Maputo fomos a um lugar sem história familiar. Para ganhar o chão que me estava a escapar. Para não se deixar levar. Para respirar. 
Fomos a Mafalala, a cidade de lata onde nasceu o Eusébio. Durante os tempos coloniais, os portugueses tinham escolhido a melhor parte do território para construírem a sua bela cidade futurista- Lourenço Marques, a cidade de pedra. O  pântano aos africanos, a construção em alvenaria era proibida, tudo tinha de ser provisório, caso houvesse necessidade de expandir a cidade colonial. Mafalala, cidade de lata.

Saímos do Tuk Tuk e entrámos imediatamente num labirinto de casas de zinco, chão de cimento.  Andamos nas estradas, construídas em bico invertido, para que as águas da chuva não inundem tudo. A cidade é limpa e, apetece-me dizer, digna. As pessoas são pobres, dizem-nos, mas ninguém nos pede nada, somos cumprimentados na rua por desconhecidos. Sentimo-nos bem-vindos. Já estive em muitas zonas do mundo com pobreza, e naturalmente as pessoas são cabisbaixas e pedem dinheiro, nada que eu não fizesse no seu lugar. Mas em Mafalala não, olham de igual, têm um brilho vital nos olhos e sorriem, não pedem nada nunca. 
No campo de futebol, epicentro da cidade, um menino de 4 anos aproximou-se de nós e pediu que lhe tirassemos uma fotografia, eu menti-lhe e disse que já não tinha bateria. Estou habituada a crianças que depois pedem moedas e não queria alimentar este hábito, tal como nunca dou doces, porque normalmente não têm escovas de dentes, nem pasta, muito menos acesso a dentistas. Talvez esteja errada, as minhas intenções são boas. Uma outra pessoa acedeu e no final deu uma moeda que não tinha sido pedida. 5 minutos depois a criança vem ter connosco com moedas e quer dar o troco do doce, o homem diz que não é necessário, que é para ele, mas a criança é inflexível, já tenho o meu doce, não preciso de mais.
E eu que vivo sempre tão rodeada de chico-espertice, de vendidos abastados, fiquei de lágrimas nos olhos. Como andei todos os dias que estive em Moçambique.
 
A humanidade podia ser melhor. Mas não está a escolher ser há já demasiado tempo. 
Se cada um ficasse apenas com o que precisa. 
Estamos num caminho tão, tão errado, e já nos perdemos há tanto tempo. Saí emocionada mas sem esperança de Mafalala.
E não vos falei sequer da sabotagem na educação das crianças, dos 13 jovens de Mafalala covardemente  assassinados durante as manifestações de Novembro, dos traficantes de droga impunes, da carta do indigena, da linha que separava a cidade de pedra da de lata, da mulher que não sai do bairro há 3 anos porque não há nada de bom para ela lá fora, da memória apagada de Noémia de Sousa. De tudo o que trago cá dentro e não me deixa ainda respirar, quase 10 dias depois de ter aterrado em Lisboa

Não estou igual. Não sou igual.


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6.6.25

Terra

Na manhã do voo para Maputo recebo uma mensagem de um amigo, dizia que ía " à minha terra" passar o fim de semana - queria conselhos. Achei uma coincidência incrível, com certeza iriamos no mesmo avião. 

Mas ele ìa a Paris. "A minha terra". 

A minha família uniu-se  no grupo de WhatsApp para me dizer que  eu ía amar "a minha terra", Maputo.

E eu a ler isto tudo na minha casa em Lisboa. 

Nunca tive terra. 
Lembro-me das férias grandes do Verão, dos meus amigos partirem de carro na madrugada para passar uma temporada na terrinha. Nunca soube o que era isso. Na casa dos meus pais sempre se disse que a nossa terra já não existia. 

Num almoço com uma amiga que vive numa cidade europeia, especulávamos sobre uma possível terceira guerra mundial e ela dizia que se fossemos invadidos, ela ficaria em casa a ajudar quem precisasse de ajuda na sua terra, que iria lutar, não iria dar tudo de mão beijada. E eu, que gosto tanto de beijos na boca, não consigo compreender quem se bate pela terra. Serei a primeira a fugir em caso de conflito, antes mesmo dos ratos. 
Sócrates tinha aquela frase maravilhosa "sou um cidadão do mundo", mas eu nem isso me sinto. Não pertenço a lado nenhum, todos podem entrar e sair de todos os territórios. Pertenço a outras coisas, com certeza. Gosto de pensar, que sim. Gosto de pensar que, às vezes, pertenço a mim. 


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25.4.25

Liberdade

Nasci em 1974, sou filha da madrugada. Ao longo destes 50 anos evolui muito, gosto de pensar que estou cada vez melhor, mais inteligente, mais compreensiva, mais livre. Uma das coisas mais valiosas que aprendi, uma das coisas mais importantes, foi dizer "não".  Nem tudo pode ser, nem tudo pode acontecer. 


A liberdade de um acaba quando começa a liberdade de outro. É um chavão, todos o conhecemos, sempre pairou no ar, mas, vivemos num sistema como se não fosse importante. Tenho tantos anos quanto a democracia em Portugal, já errei muito, não quero ser outra pessoa, quero ser esta pessoa, mas melhor. E é este o raciocínio que gostava de ver sempre e em todo o lado, mas hoje, sobretudo, no sistema político. A democracia tem os seus limites, mas é a melhor base que conheço. Deve ser melhorada, deve evoluir. E pode, deve, começar a evoluir dentro de si mesma, na sua raiz. 
A democracia tem que saber dizer "não". 

Não! Não faz sentido haver sistema político se não for concebido para o bem comum. 
Se estamos a partir de um sistema que só apoia um grupo, então que se foda tudo e partamos para a anarquia - não fomos educados para viver de uma maneira positiva em anarquia, para grande pena minha. Eu sei, eu sei... 
Resta-nos olhar para a democracia e adaptá-la ao mundo actual. Colocá-la ao serviço de todxs os que vivem neste território. TODOS. Caso contrário, não estaremos a falar de bem comum, não estamos a falar de sociedade, não estamos a falar de nada e é melhor ficar calado na praia, na assembleia, nas ruas. Se há um partido que ataca uma parte da população, esse partido não faz sentido, esse partido não devia existir. Esse partido devia partir. Esse partido devia ser partido. 
Não!
Fascismo nunca mais!

Hoje vou desfilar na avenida, como desfilo sempre que posso. Espero ver-vos por lá. Espero ver esperança.

Outros textos livres do colectivo Largo:


18.4.25

Despertador

Até entendo a utilidade dos despertadores. Percebo que estamos nisto juntos e que haveriam muitos encontros que não se fariam se não houvesse horas nem alarmes. Por outro lado, perdemos sempre alguma coisa, mesmo quando ganhamos outras. Quantas vezes conseguimos o que queríamos porque fizemos tudo bem, estivemos na hora certa e assistimos àquele pôr do sol ou encontrámos aquela pessoa e achámos que a vida foi boa connosco porque obedecemos às regras? Aceito todo este raciocínio. Mas, porque não valorizamos mais o que nos aconteceu por acaso? O que não tínhamos planeado, aquelas experiências todas sem hora marcada, que só aconteceram porque estávamos no lugar errado? 

"Errado"

Uma das grandes conquistas da minha vida é quase não usar deserpertador. Acordo porque alguém fez barulho sem querer ou porque já não me apetece estar na cama. Chego atrasada, claro. Perco coisas, evidemente. Mas esta falta de stress em excesso, este deixa andar parece-me muito mais próximo do que somos e do que viemos aqui fazer.
Continuamos a elogiar muito as grandes invenções humanas, e eu, que sou muito pela ciência e por muitos dos seus resultados, dou por mim a contar todas as invenções que só vieram ao mundo para andármos para trás. Bombas, pistolas, produtos tóxicos, microplásticos, viagens espaciais de turismo, despertadores.
Preferia mil vezes acreditar que a terra era plana e que cada trovoada são os deuses zangados do que viver num tempo em que se mata crianças aos milhares e se noticia o feito entre um anúncio de carros e um relato desportivo.
Queria ser índio, andar nua pintada de verde num eterno domingo, a Rita Lee tinha toda a razão - oh, deusa maior. 


O colectivo continua a escrever todas as semanas, podem ler outros textos sobre despertadores se seguirem os links:


(em actualização)