Não somos iguais.
No terceiro dia em Maputo fomos a um lugar sem história familiar. Para ganhar o chão que me estava a escapar. Para não se deixar levar. Para respirar.
Fomos a Mafalala, a cidade de lata onde nasceu o Eusébio. Durante os tempos coloniais, os portugueses tinham escolhido a melhor parte do território para construírem a sua bela cidade futurista- Lourenço Marques, a cidade de pedra. O pântano aos africanos, a construção em alvenaria era proibida, tudo tinha de ser provisório, caso houvesse necessidade de expandir a cidade colonial. Mafalala, cidade de lata.
Saímos do Tuk Tuk e entrámos imediatamente num labirinto de casas de zinco, chão de cimento. Andamos nas estradas, construídas em bico invertido, para que as águas da chuva não inundem tudo. A cidade é limpa e, apetece-me dizer, digna. As pessoas são pobres, dizem-nos, mas ninguém nos pede nada, somos cumprimentados na rua por desconhecidos. Sentimo-nos bem-vindos. Já estive em muitas zonas do mundo com pobreza, e naturalmente as pessoas são cabisbaixas e pedem dinheiro, nada que eu não fizesse no seu lugar. Mas em Mafalala não, olham de igual, têm um brilho vital nos olhos e sorriem, não pedem nada nunca.
No campo de futebol, epicentro da cidade, um menino de 4 anos aproximou-se de nós e pediu que lhe tirassemos uma fotografia, eu menti-lhe e disse que já não tinha bateria. Estou habituada a crianças que depois pedem moedas e não queria alimentar este hábito, tal como nunca dou doces, porque normalmente não têm escovas de dentes, nem pasta, muito menos acesso a dentistas. Talvez esteja errada, as minhas intenções são boas. Uma outra pessoa acedeu e no final deu uma moeda que não tinha sido pedida. 5 minutos depois a criança vem ter connosco com moedas e quer dar o troco do doce, o homem diz que não é necessário, que é para ele, mas a criança é inflexível, já tenho o meu doce, não preciso de mais.
E eu que vivo sempre tão rodeada de chico-espertice, de vendidos abastados, fiquei de lágrimas nos olhos. Como andei todos os dias que estive em Moçambique.
A humanidade podia ser melhor. Mas não está a escolher ser há já demasiado tempo.
Se cada um ficasse apenas com o que precisa.
Estamos num caminho tão, tão errado, e já nos perdemos há tanto tempo. Saí emocionada mas sem esperança de Mafalala.
E não vos falei sequer da sabotagem na educação das crianças, dos 13 jovens de Mafalala covardemente assassinados durante as manifestações de Novembro, dos traficantes de droga impunes, da carta do indigena, da linha que separava a cidade de pedra da de lata, da mulher que não sai do bairro há 3 anos porque não há nada de bom para ela lá fora, da memória apagada de Noémia de Sousa. De tudo o que trago cá dentro e não me deixa ainda respirar, quase 10 dias depois de ter aterrado em Lisboa
Não estou igual. Não sou igual.
Todas as sextas-feiras um grupo de escritoras publica um texto sobre o mesmo tema, a hora é aleatória, a assiduidade é a possível.
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