16.4.15

O tempo que passa em Hué

Se o principio dos encontros é importante : tudo começou com uma brincadeira de crianças. Em vez de uma bola, uma pena com uma base pesada que se joga aos passes com o pé, se for preciso com a mão, numa rua de Hué, frente a uma estrada normal de uma cidade vietnamita. Muitas motos, bicicletas, rickshaws, alguns carros e outro veículos mais ou menos motorizados, mais ou menos equilibrados. O meu filho joga com um rapaz, ainda com o uniforme da escola, e uma menina vestida de vermelho, como todas as bandeiras hasteadas, uma estrela amarela no meio. A minha filha vigia o jogo de perto, com receio que a pena fuja para a estrada e o irmão corra atrás. Uma mota que passasse e o acidente dava-se. Dissemos-lhe que ele sabe disso, que viva a vida dela. Mas prefere seguir a premissa do nunca fiando. Este não é um texto sobre crianças.
Este é um texto que foi acontecendo, enquanto estávamos à espera que o jogo acabasse. Os homens, que estavam sentados nas cadeiras vermelhas, a beber uma cerveja e a controlar a obra, que ia avançando numa garagem, proposeram-nos cadeiras. Sentamo-nos e agradecemos a gentileza, respondendo a todas as questões que íamos percebendo, de onde éramos, há quanto tempo tínhamos chegado, a idade dos filhos... O jogo não acabava e a conversa ia continuando. Talvez este seja um texto sobre as conversas que continuam.
O tempo passa. Um dos homens levanta-se e faz-me sinal para o seguir - eu sigo homens desconhecidos em cidades bonitas do Vietname. Entre os edifícios em forma de garagens , que se vão transformando em lojas ou em restaurantes de bolos de agua de arroz, devia eu avançar numa ruela. No final da ruela um edifício antigo que julguei ser um templo. Chamo o resto da família e agradeço. Mas o edifício não era um templo, apesar de também ter um altar. Da porta saiu um senhor, o pai dos homens, que ainda sabia falar francês, do tempo da ocupação francesa. As palavras custavam-lhe a sair, já se tinha esquecido de muita coisa. Em oitenta e sete anos, acumulou muita informação e o cérebro há muito que andava a fazer uma selecção aleatória.
Diz-nos que somos bem-vindos em sua casa. A casa. A mais bonita de Hué, escondida por trás dos novos edifícios que os nove filhos transformam em ganha pão. Uma grande família, crianças por todo o lado. Crianças a dormir. Crianças a comer. Crianças a brincar. A casa no meio. Gostava que este texto fosse sobre a casa. Mas não sei se vou ser capaz. A casa tem mais de 150 anos, é feita de tek, num estilo radicional, e resistiu a tudo. E tudo, em Hué, não é pouco. A invasão francesa. O  colonialismo. 1946 e a guerra da Indochina. 1968. A invasão dos Viet Cong. A guerra do Vietname contra os "americanos". In order to save it, we had to destroy it. 
Sentam-nos no sofá, não nos deixam tirar os sapatos e servem-nos agua fresca. Quero perguntar-lhe sobre tudo o que se lembra, não sei se tão cedo vou querer sair desta casa. Deste sofá. Conta-nos o que nos quer contar sobre a sua vida, o diploma que podemos ver na parede, o pai, que construiu a casa. Vai buscar fotos do irmão mais novo, uma parte da família senta-se connosco e ouve mais uma vez uma historia conhecida. O irmão foi viver em Paris e nunca mais voltou, mostra-nos fotosdele em casa com os netos na rue de l'Ourcq. Correspondência trocada. Fotos num cemitério. A presença deste irmão, ainda jovem, numa fotografia a preto e branco pintada a cores, está por detrás de uma cortina, em cima de um altar. Incenso, comida, café, acreditam que ele goste, existem coisas que não mudam com o tempo. Nem com a morte.
Do lado de fora da casa, ouço o nome dos meus filhos com pronuncia vietnamita, risos e sons de passos que correm. Mas dentro da casa, temos dificuldades em perceber o que o senhor nos quer dizer, e nenhum dos filhos fala francês ou inglês. Quando pedimos-lhe para repetir, pergunta-nos se somos ingleses, talvez o nosso francês não seja suficientemente bom para entender o que nos quer dizer. Sorrimos, mas a verdade é que nos custa não perceber tudo. Como sobreviveram, como a casa sobreviveu, como é que se viu escondida dos passantes na rua, nunca saberemos.
Tiramos fotos juntos e prometemos-lhe enviar-lhe quando chegarmos a Paris. A senhora, que não fala francês e comunica por gestos, vai-se pentear. A única com preocupação em ficar bonita na fotografia. E fica. Tiro fotos das fotos do casal enquanto jovem. O tempo passa lentamente em Hué. Mas passa, mesmo assim. Não consigo ver a jovem mulher, no rosto da bela senhora. O senhor não se lembra de tudo. O tempo apagou feições e memorias.
Despedimo-nos com emoção, repetem-se votos de boas-vindas para o futuro. As crianças brincam ao pedra folha tesoura enquanto avançam para a estrada. O meu filho quer marcar um proximo encontro. Quer acrescentar certezas dentro do see you que trocamos.
Tento tirar uma ultima fotografia da casa, mas é  impossível, não consigo afastar-me o suficiente para que entre na câmara. O progresso e as vidas dos filhos não me deixam ver o passado. Amanhã vai ser mais fácil, vamos visitar a casa do imperador, vamos ter mais espaço. Mas foi aqui que nos emocionamos. Na casa escondida do pai do senhor Nguyen.

4 comentários:

  1. Uma pessoa até se inibe de comentar uma coisa tão bonita. Felizmente sou uma gralha: que maravilha, Carla. Que maravilha.

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  2. oh....quando fiz erasmus em lausanne trabalhei com uma vietnamita cuja família tinha fugida da guerra cujo nome de família era Nguyen e nome próprio Hanh. provavelmente haverá esse apelido aos montes....mas fiquei com saudades dela era um doce ...
    continuaçao de boa viagem! continuamos a adorar...

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  3. Apetece me dizer asneiras. Mas o texto e o que contaste merece o maior dos respeitos. Emociono me, de novo e de novo te agradeço por estas dádivas. <3

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  4. Também já fui feliz em Hué, a andar de bicicleta ao fim da tarde junto ao canal (rio?)...

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