5.4.15

Era para ficar


Fomos mandados para Sapa.
Não sei o que aconteceu em Luang Prabang. Estava bem na minha pele, no Laos, das tais felicidades que não percebemos, até que nos acabam. Sabia-me muito mais do que apenas confortável. Laos pareceu-me um pais para mim, a dada altura: ninguém a querer vender-me nada. O luxo raro dos nossos dias. Entra-se numa loja no Laos, como se entra no pais, queremos ver, queremos comprar, pensamos, mas encontramos o laociano a viver a vida dele, a dormir a sesta, a beber cerveja, a passear. Temos que ter calma e andar pelo nosso pé, escolher o nosso  caminho. Temos que ir à nossa vida, como se a própria vida disso dependesse. E depende. Não comprar, não pedir, não nada.
Ir andando.
Estávamos em Luang Prabang, que muitos dizem ser a cidade asiática mais bonita da Ásia, que é como quem diz do mundo, quando me apeteceu muito sair dali. E voltar a um sitio onde fui feliz. Sempre um gosto de pornografia ao escrever a palavra "feliz". Qualquer dia é tabu, vai ser censurada nas redes sociais. Não se pode dizer que se foi, ou pior, que se é feliz, assim sem consequências. Preciso de aprender a me conter. Qualquer dia habilito-me.
Que se desenganem os que pensam que não estava a ser feliz em Luang Prabang. Estava. Estava a ser feliz, a subir a colina para ver o pôr do sol e não foi por não o ter visto, por causa do fumo das queimadas dos campos de arroz, que fiquei infeliz. Estava feliz por ver o Mékong e não foi por não ter mergulhado nele que fiquei infeliz. Estava feliz por ver a cerimonia de doação de comida aos monges, e não foi porque havia muitos turistas desrespeitosos, que fiquei infeliz. Estava feliz a comer no mercado e não foi porque não gostei do buffet que fiquei infeliz. Estava feliz na cascade de Kuang Si, e não foi porque nos fomos embora cedo demais, que fiquei infeliz. Estava feliz ao atravessar o Mékong para visitar a gruta de Pak On, e não foi porque não era como eu pensava, que fiquei infeliz. Estava feliz em Luang Prabang e não foi por causa de detalhes que não correram como eu queria, que fiquei infeliz. Fui andando, a viver a minha vida. Que ela disso depende.
Luang Prabang continua a ser a cidade asiática mais apetecível. Uma cidade que não apetece deixar. Sempre a sensação que nos faltou ver um canto a um templo, ou deixamos uma espetada por comer, uma ruela por espreitar, um sabaidee a desejar. Estou a falar assim de Luang Prabang, porque gostava que houvesse alguma justiça neste texto.

Mas depois houve aquela noite.
Não queria continuar a viagem em direcção do sul. Não sei porquê. Nem sempre sabemos de onde nos vêem os apetites ou as motivações, somos animais, não temos que saber tudo. O sul parecia-me estéril, seco e quente e, de repente, eu ansiava pelo contrario. Mudar de rumo. Alterar tudo. Colocar os pés no lugar das mãos. Devíamos partir para o sul, mas eu sonhava com o norte.
Amigos feitos na viagem, tentaram convencer-me com as suas motivações e os seus sonhos, que também tinham sido os meus, as 4.000 ilhas, percorrer Paksé de bicicleta, a gruta de sete kilometros de onde todos saiem diferentes do que quando entraram. Mas eu não quero mudar, não quero ser diferente do que sou.
E quero muito voltar para la, para o sitio onde fui feliz. Disse ao Francês que sentia que algo em mim me puxava para Muang Ngoi, outra vez. Algo forte, que vinha de dentro. E falei-lhe de pressentimentos e vontades. E ele foi buscar-me pensos higiénicos.
Acho que nos estamos a transformar naquilo que se chama um casal rodado. Temos que estar atentos, todos os cuidados são poucos.
E foi assim, hormonalmente mandados, que pela segunda vez entramos num barco demasiado cheio para subir o rio Ou, a caminho das aldeias perdidas e achadas de Muang Noi. E foi assim, que mudamos os planos de descer o Laos, atravessar o Cambodja e subir o Vietname. Como se tivéssemos um dia acordado e decidido atravessar o Tejo de barco e não pela ponte. Porque nem sempre temos fingir que é tudo muito complicado e pesado e impossivel. Porque às vezes, percebemos, que quem manda nisto tudo podemos ser nos. Isto tudo é a nossa vida. O resto não me interessa. O resto são restos.
Quando nos encontramos com pessoas que estão a viajar e a quem tinhamos falado dos nossos planos, dou a a desculpa do calor que se faz sentir no sul do Laos e do fresco que vai estar no norte do Vietname, como se fosse uma velhinha que tem medo de temperaturas acima dos 25°. Sempre é melhor, do que passar por uma esoterica primaria, que liga ao que a lua e o sangue lhe diz. Pelo menos assim, ninguém foge de nos.

Agora, para avançar no texto, sinto-me num embaraço. Eu, que não gosto que me vendam, não sei se consigo falar de Muang Ngoi, sem parecer uma agência de viagens que vos quer impingir um tour. Difícil, principalmente vindo de quem,um dia, pensou largar tudo para viver aqui. Imaginei-me habitante sedentária da aldeia à esquerda do riacho, antes da estrada começar a subir. Andar por aquela terra batida para me lavar no rio. Deixar os meus filhos à solta. Deixar o Francês ainda mais à solta. Soltar-me mais um bocadinho.
Não me lembro do nome da aldeia, mas não é por isso, que o meu projecto de mudança de vida deixa de ser credível.
Eu podia muito bem ter largado tudo e ter começado ali a viver. Os meus filhos na escola, o Francês a fazer cestos de verga na sombra da nossa casa e eu ia para a horta cavar, se é o trabalho com a terra que me apetece neste momento. Sujar as mãos, esfolar joelhos, curvar as costas, dizer-me cansada, colher para comer, depender da chuva, depender da lua. Seriamos uma família com sorte, diz-me a mãe dos três filhos, que vêem brincar com os meus. Temos um menino e uma menina, ainda por cima o menino parece-se com a mãe e a menina parece-se com o pai. Muita sorte. O mesmo não pode dizer o senhor Ha : cinco filhos homens, e a mulher não pode engravidar outra vez, o coitado, e ainda não sabe como é que vai fazer. Para que se casem, vai ter que arranjar mais kips do que lhe apetece dizer. Muitos, mesmo se convertidos em dolars. Sugiro-lhe que emigre para a Índia, onde é a família da noiva que paga o dote, ia ser um homem riquíssimo, todos os problemas transformados em soluções. Sorri-me. Vai ficar no Laos, com os seus problemas e a sua angustia. Compreendo-o. Todos queremos soluções de compromisso, fáceis de executar, algo que nos dê jeito. E lamentar também faz parte da natureza humana, nem tudo tem que mudar - às vezes, é assim porque sim. Que o que tem que ser somos nos que decidimos, nem sempre pode ser visto. E eu sei disso. Todos sabemos. Mas poucos nos lembramos.
Cinco filhos homens. Ninguém merece.
Acabamos a nossa vida em Muang Ngoi a banhos no rio Ou. Dois metros acima, duas mulheres tomam banho, shampoo, sabonete, mais acima 7 búfalos não querem sair da agua, o meu filho hesita se aceita ou não o convite de se deixar ir em cima de uma câmara de ar com três adolescentes, não quer que lhe mexam no cabelo. Eu filmo um rufia de 12 anos a cantar e a tocar bateria nas latas que encontra na areia, a minha filha faz castelos de areia, como na Costa da Caparica e o Francês admira o segundo pôr do sol do dia, ao colocar-se no sitio certo, por trás de uma montanha mais baixa. Tudo é uma questão de perspectiva. No dia seguinte, vamos ter seis horas de barco, para escolher a nossa.
Um dos laocianos que nos acompanha vai levar duas poderosas colunas de som para a sua aldeia, vai haver karaoke para todos. A morte da ultima aldeia ritmada pelo som longinquo dos macacos.
Depois do rio subimos atravessamos a fronteira para o Vietname, provavelmente cedo demais. Vamos a caminho de Sapa, para onde fomos mandados.

2 comentários:

  1. Que maravilha! Mesmo em trânsito continuas inquieta. Não demores muito a contar o que aconteceu em Sapa. E também gostava muito de saber onde é que o francês arranjou pensos higiénicos em Luang Prabang, porque em Bali, que é uma estância turística, vi-me aflita para comprar tampões. Bom, mas isto são minudências, comparando com tudo o resto.

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