21.12.14

A terra maldita


Devemos ter chegado no pior momento possível a El Chalten. O céu negro, o vento de Norte, uma ameaça de neve e a avenida Martin que não parecia ter fim. Lembrei-me de Charlie Chaplin no The Gold Rush e quis voltar para o autocarro. Nem sequer havia ali ouro. Mas à minha frente, os meus filhos.
Os meus filhos a avançar, mochilas às costas, capucho na cabeça, sem protestar. Se era para seguir, eles seguiam. Seis e oito anos. Como é que cresceram assim, é um mistério. Penso nunca lhes ter falado da importância da coragem. Julguei não ter tempo.
Não sei o que tem esta vida nómada, de essencialmente tão diferente da rotina escola-casa, que os cansava e exasperava tanto. E que os muda assim.
Ou que me faz vê-los tão diferentes.

Chegamos ao primeiro hotel que nos parece adequado e há quartos para nos. Na recepção prometem-nos bom tempo para o dia a seguir e começamos a fazer planos com o Fitz Roy. Ignoramos, sem escrúpulos, as propostas para crianças, do posto de turismo.
Uma criança é uma criança, é uma criança.

No dia a seguir, começamos caminho, evitando que o meu filho atraia cães, como é seu costume - que são proibidos no parque, porque afugentam os Humueles. Nunca os chegaremos a ver. Nem pumas, para alivio da minha filha. Apenas águias, condores e zorrinos patagonicos. "Apenas".
Caminhamos lado a lado com os alpinistas que vão tentar a sorte até la acima, todos esperamos que não hajam nuvens. Um Fitz Roy limpo é o sonho comum. Cumprimentamo-nos como se não fossemos colegas de escritório, e isso é sempre bom.
Andamos 6 horas em caminhos de montanhas, vemos do alto o rio que nasce nos glaciares, branco de perto, verde de longe. Corremos alguns riscos calculados, aproximamo-nos de precipícios para vermos melhor. Para vermos tudo.
Tudo, parece-nos suficiente.
Chegamos ao Fitz Roy. Limpo. O meu filho grita a exclamação que sinto quando o vejo. Nunca tinha ouvido falar do Fitz Roy antes de ter chegado a El Chaltren. Impressionante, a montanha da minha ignorância.
O que vejo é maior do que sei ver. Tiro fotos. Em vão. Será sempre em vão. As fotos bonitas e profissionais, no corredor do hotel. Vãs.
O Fitz Roy é isto. Não se prende com ângulos ou filtros. O ultimo dos selvagens.
Abençoado.
Almoçamos à frente da lagoa de Capri. Uma águia cobiça-nos as sandwiches. Não cedemos. E voltamos ao hotel cansados. Com um gosto de ter vivido o dia certo.
Desejo muitos dias assim. Grandes.
Completos, como dizem os meus filhos.


[A partir de agora apenas as mentes livres poderão continuar a seguir este blogue. Um até breve às restantes.
Os relatos desta nossa epopeia estão mais do que atrasados e apetece-me falar do que estamos a viver agora. Faço uma razia injusta a tudo o que vivemos na Bolívia, no Norte do Chile e em quase toda a Argentina. Mas tenho intenções sinceras daqui voltar para escrever do passado. E voltarei. Sem regras. Pelo que haverá grandes delírios a nível cronológicos. 
Apertem os cintos se estiver na Argentina ou no Chile. Na Bolívia, não vale a pena pensarem nisso, quase nenhum carro os tem.]

5 comentários:

  1. Olha, minha querida, para conseguir ler este tamanho de letra, uma pessoa precisa mesmo é de olhos bons! Conheço desgraçados que têm de fazem grandes zooms para te seguir. :)
    "Como é que cresceram assim, é um mistério. Penso nunca lhes ter falado da importância da coragem."
    Como é que tu cresceste assim?
    E a ti, explicaram-te a importância da coragem?
    São os atos, são sempre os atos, mais do que as palavras.
    Um abraço forte.

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  2. Por acaso, a primeira coisa em que reparei ao olhar para as fotos foi como os miúdos estão crescidos. Podias não ter reparado nisso, visto que passam os dias juntos, mas afinal olha.
    Tu não pareces estar a crescer demasiado, não te preocupes. Deve ser como aquilo de ir numa nave espacial e a relatividade e coiso. Vou esforçar-me por ser uma mente tão livre quanto possível.

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  3. Eu sou uma mente livre. Cá te espero.

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