2.12.14

O que pode transformar as pessoas


Não sei como, mas chegamos a Rurrenebaque. Apeteceu-me abraçar os meus companheiros de viagem, todos os 45. Conseguimos, conseguimos. Mas preferi continuar o dia sem espontaniedade, não sou assim tão nova, nem tão velha para poder fazer o que me apetece e conseguir viver com isso. Talvez aos noventa anos, com certeza aos dois.
Chegamos a Rurrenebaque e, para dizer a verdade, tenho uma ligeira ideia de como o fizemos : cansados, moídos, cheios de olheiras e de calor. De repente, estávamos num lugar cheio de humidade, com 45° e mosquitos. Como se tivéssemos passado de Fevereiro a Agosto em 25 horas.
25 longas horas, que nos pareceram meio ano.

Os nossos filhos falavam-nos de um nascer do sol vermelho e das redes que estavam no pátio do hotel. Os olhos a brilhar. O meu corpo falava-me de desejos de redenção. Os olhos a fechar.
Passamos um dia inteiro a fugir. Do sol. Da fome. Do não podermos mais. Encontramos uma ventoinha impotente, salchipapas e uma promessa de vida selvagem para o dia seguinte.
Calculo que o Vietnam seja assim, muito calor e motas a circular, como se fossem insectos. Todos adaptados, menos eu.
Penso muitas vezes também em Moçambique, a terra prometida. O paraíso na boca da minha família, materna e paterna, imagino portas abertas, mangas maduras nas árvores, parties com slows e rock and roll nas garagens, mini saias, laurentinas frescas. Mas começo a duvidar da minha felicidade no paraíso. Não digam nada à minha mãe, mas detesto ter calor, transpirar, não saber o que fazer para voltar a uma temperatura  confortável, implorar por uma brisa fresca, sonhar com neve. Seria para ela um grande desgosto.

Dormimos como podemos, com sonhos doces de crocodilos que nunca veremos. No dia seguinte, tomamos o pequeno almoço ao som da banda militar "El Mar es Nuestro por Derecho, Recuperarlo es un Deber". Engolimos em seco o sumo de laranja e entramos num jipe em direcção às Pampas bolivianas. No caminhos vemos uma capivara atropelada e um alligator cortado ao meio. 
Numa aldeia de 3 casas apenas, chamaram-nos com sinais de braços,catanas nas mãos. O motorista parou o jipe na estrada vermelha e aproximamo-nos de um grupo de homens de sorriso nervoso, um alligator preso a uma árvore. Uma poça de sangue que não queríamos ver. Tecemos falsos elogios, o meu filho deixou cair lágrimas que não eram de crocodilo. 
A lei da selva. A lei da sobrevivência. Uma porca que se passeia com os seus leitões. Se não o matam é ele que os mata, compreendem? Não compreendemos grande coisa, o que é normal quando se chegam a um novo mundo. Acho eu. 
Ouvimos o tiro de misericordia enquanto nos afastávamos em direcção à reserva das Pampas de Yacuma. O meu filho vai falar desta experiência durante meses. Na altura, declara-nos a confirmação do seu mais belo projecto, vai ser protector de animais quando for grande. E cantor rock.

Chegamos ao rio. Ainda não tínhamos saído do carro e os meus filhos já gritavam golfinho cor de rosa.  Nunca pensei que a natureza pudesse ser assim tão ... selvagem. E abundante. Natureza por todo o lado. Estávamos a viver num documentario da BBC, apesar do nosso péssimo sotaque.

Entramos no barco a olhar para o rio, um alligator não se importou connosco e um golfinho continuou a remoer a superfície de agua castanha. Como se nada fosse. Como se não fosse completamente extraordinario estarmos aqui. A natureza pode ser muito insensível, não olha a meios, não olha a fins, não olha a nada.

O guia pediu-nos, por favor, para nunca mais dizermos que vimos crocodilos, o que nos podia comer, caso caíssemos ao rio eram alligators e mais provavelmente Caïmans - é importante saber-se o que se come e por quem podemos ser comidos. De onde viemos, para onde vamos. 
Olhamos para uma árvore e vemos os animais a viver em paz, mas se estivermos atentos o tempo suficiente, vemos o alligator a comer um bebé capivara, um pássaro a voar com um peixe na boca. A cadeia alimentar, quando não esta em acção, organiza festas entre vizinhos. Naturalmente. Assim também é a vida, longe dos subúrbios burgueses de Paris.
Este é o verdadeiro perigo do turista : as conclusões precipitadas, a distorção daquilo que se vê, a ignorância que preenche todos os vazios. Escreve enquanto se viaja é sempre e sempre será uma produção de ilusões, enganos e preconceitos. Mais ou menos massiva, dependendo do leitor.

Objectivamente falando, por exemplo, vi pássaros do paraíso a cupolar e foi das observações mais eroticas a que já assisti. O som. O piar deste pássaros parece o som da respiração humana. Passamos de barco e das árvores, alguém respira ofegante. Quando acasalam, o som parece dominar a selva toda. Ou a minha cabeça. A minha cabeça que esta no barco, onde esta o guia, o meu namorado, os meus filhos e duas turistas alemãs. Objectivamente falando, é constrangedor. 
E depois temos a selva toda a acasalar. Capivaras, alligators, vários tipos de macacos, as pirañas, com certeza, que não são menos que os outros, pássaros de que desconheço o nome, algumas plantas. O sexo é omnipresente, mas esta poderá muito bem ser uma observação completamente subjectiva, que revela muito mais sobre quem a escreve, do que seria à priori pretendido. 
Ou por quem a lê, acrescento, tentando a todo o custo descartar-me.

Vimos macacos a aproximarem-se de nos, a quase tocar-nos, vi uma turista entrar em pânico por causa de um pássaro que mergulha para pescar e depois sai lentamente da agua, apenas o pescoço em forma de serpente, vi uma preguiça, que não era a minha, e isto deu-me uma estranha sensação de pertença e solidariedade, vi uma piraña a tentar lutar contra a linha de pesca da minha filha, vi o meu filho levar com uma bola na cara, num jogo supostamente amigável ao pôr do sol. Vi-me muito suja e transpirada, a cheirar mesmo muito mal, ou mesmo muito a mim, depois de três dias se duche. Vi a preocupação na cara de um macaco capucino, vi um casal de marabouts a construir um ninho, um caïman a aproximar-se do nosso barco como se tivesse fome, vi o guia a despachar-se para nos fazer sair dali, felizmente. Vi outro caïman no nosso caminho,enquanto andávamos a passear-nos, vi-nos a dar meia volta muito rápido. Ouvi o som dos animais das Pampas à noite, os alligators a comunicarem entre si através de vibrações na agua, ouvi uma águia a responder ao som que o guia fazia, ouvi os meus filhos a imitarem o guia, ouvi a historia de injustiça e traição acerca dos salvadores do primeiro homem que se aventurou na selva. Vi os meus filhos  com galochas de tamanho adulto à procura de anacondas e a aproximarem muito, quase demasiado, os olhos da boca de uma cobra : viram tudo. Vi muitos, demasiados insectos na casa de banho, não vi agua corrente, vi uma chicha morada, feita do agua suspeita, que nos ia deixar de rastos durante uma semana, vi à noite o reflexo da nossa lanterna nos olhos dos alligators e dos caïmans e vi muito mais que aqui não escrevo por preguiça ou esquecimento. 

Objectivamente, estou curiosa por saber o que recordarei daqui a vinte anos.

6 comentários:

  1. Estou firmemente convicta que o que vai importar daqui a vinte anos não são as recordações, ao estilo descritivo. Para isso serve aqui o blogue, não é? Nós somos só sanguessugas da vossa história, claro.
    Ah, e eu bem sabia que as aves são animais muito eróticos. Não percebo a insistência com os mamíferos.

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    1. Assim sendo, explica-me, por favor, o que vai importar, daqui a vinte anos. Gosto de fazer investimentos de futuro.

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  2. Eu estive quase só a fixar a parte do sexo mas tenho de perguntar: é impressão minha ou os teus filhos estão a aproveitar esta experiência da forma que gostarias mas não podes uma vez que és, bom, mais velha e, ainda por cima, mãe deles?

    Quanto ao que vai importar daqui a vinte anos, vai importar terem decidido fazer isto juntos e o que cada um retirou da experiência. Ou seja, só daqui a vinte anos é que saberás. Sorry mas viver é mesmo isso. É claro que uns vivem mais do que outros.

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    1. Os meus filhos estão a proveitar muito a viagem, mais do que estava à espera. Eu estou a aproveitar como posso, uns dias imenso, outros dias a querer sopas e descanso. Devia estar a fazer esta volta ao mundo, com três ou quatro ja feitas na barriga, essa é que é a verdade. Nunca é tarde, mas o tempo perdido no passaddo, é sempre tempo que se perdeu.

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  3. (Nós, por exemplo, estivemos na ilha do crocodilo e não vimos um único espécime)

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