14.10.14

Sindroma de Estocolmo em Raqchi


Voltamos a Urubamba, no caminho de regresso à nossa estrada. Estranho, como de repente uma palavra como "Urubamba" nos parece "casa".
Somos daqui. Dizemos ao señor que conduz o colectivo que nos pode deixar ali na esquina, por favor. Sabemos por onde temos que ir, as crianças vão à frente a correr. Cuidado com os porcos no meio da estrada ! Recebem-nos de braços abertos. Temos nomes e diminutivos. No jardim, deixamos os miúdos desaparecerem das nossas vistas. Sentamo-nos nas cadeiras de palha e deixamo-nos ficar em silêncio.

Dois dias nisto. Podíamos ter ficado uma semana. Mas Urubamba é perigosa para quem quer ver o mundo e estamos conscientes disso. Temos alguma dificuldade em libertar-os dos braços da dona da hospedagem, mas conseguimos fugir. Uma moto táxi. Um colectivo. Cusco. Um autocarro e em vez de ir directamente para Puno, decidimos parar à aventura. Caramba, ou estamos nisto a fundo,ou somos ratos.
Raqchi. 200 habitantes. 0 alojamentos oficiais para turistas. Nenhum contacto disponivel de longe. Vamos improvisar.
Chegamos mais tarde do que estava previsto. As eleições são no dia a seguir, ha perturbações na estrada. Somos os únicos a sairem Raqchi, ninguém percebe à primeira quando digo Raqchi. Portanto digo-o com todas as letras e mudo de entoação a cada vez que tento. Meio autocarro acena-nos adeus, como quem diz boa sorte, vão precisar.
Ao fundo, num descampado joga-se futebol, contornando as vacas. Começa a chover e não esta a ficar cada vez mais de dia.
Vou pelos campos de cultivo à procura de alguém. Um cão vem atrás de mim, vi nos seus olhos a intenção nítida de me morder, talvez fosse estrábico. Encontro três pessoas com uma enxada a lavrar a terra. Conto a minha historia, no melhor espanhol que consigo. A comunicação não flui. Casa. Dormir. niños. Por favor. Sorriso. Uma senhora aproxima-se e vai buscar o seu smartphone a um molhe de tecido no chão, diz qualquer coisa em quechua. Toda a gente tem um smartphone, podemestar vestidos de maneira tradicional, a lavrar a terra com instrumentos de varios seculos passados, mas não nos esqueçamos dos erros a induzem as aparências.  E faz-me sinal para a seguir. Leva-nos a outra senhora que juro que não sei o que estava a fazer. Um saco. areia. Não sei. Fala-me metade em quechua, metade em espanhol. Existe um pacote. Turismo vivencial. Cena. bailado. Dormir. Desayuno. Demonstração de cerâmica - muito reputadas na região. Armuezo.
Muito caro. Tento negociar, queremos apenas dormir. E como não há restaurante, nem mercado, nem café aberto, tudo bem, comer também. Consigo pagar por três pessoas, em vez de quatro, mas não escaparemos ao bailado. Ri-se. Um pacote señora. Faz-se sempre péssimos negócios quando não se tem escolha.
A senhora Conceiçon agarra nas nossas mochilas e coloca-as num carrinho. O Francês  insiste em ser ele a carregar. A senhora insiste também, mas apenas porque não conhece o Francês. O meu.
Vou atrás, a ser simpática a,fazer voz doce, a tecer elogios e a tentar baixar, mais um bocadinho que seja, o preço. Ri-se muito. Mas não baixa meio sole.
Para rentabilizar, decidimos entrar no site arquelogico, quase de noite, quando não havia vivalma na praça e o guarda tinha ido não sabemos onde. Um bocado de adrenalina ajuda sempre a equilibrar os pratos. As fotografias não ficaram grande coisa. E uma vez mais, ensinamos aos nossos filhos, de uma forma mais ou menos involuntaria, que a lei, a lei...
O jantar é bom. O bailado inclui um ritual de agradecimento à Pachamama, folhas de coca, palavras em quechua, espanhol, devolvem no final as folhas à terra - não vou referir que entretanto estávamos vestidos com fatos tradicionais, chapéus e tudo. Dizemos no final muchas gracias e tentamos ir para o quarto discretamente. Não nos afastamos nem dois centimetros. Duas danças. Uma senhora a cantar muito bem, seguramente, dentro do seu género, uma canção dedicada ao eucalipto. Ao eucalipto ? pergunto em português, que entretanto, deixei de fazer esforços. Uma pessoa, a certa altura baixa os braços. Não percebi a resposta, a musica continuou e dancei.
Os miudos tiveram uma vez mais, o melhor dia das suas vidas. Apesar de terem ficado profundamente chocado por terem sido alvo de exploração infantil. Fizeram o seu melhor na aula de cerâmica e tiveram que deixar para tras a peça de arte que dali saiu. Estão convencidos que Raqchi vai fazer fortuna com o resultado do seu trabalho.
Eu sobrevivi.
O Francês, não tenho a certeza.

2 comentários:

  1. A tua sobrevivência é muito apetecível vista daqui da rotina outonal de Lisboa, pá. Acho que preciso de fazer aquilo que recomendaste no post de Machu Picchu e viver a vida (assim que desligar o computador e sair da secretária).

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    1. Estou a fazer-me de dificil, até gostei da experiência, foram todos excessivamente simpaticos. No final, até gostei, sim.
      Apenas me caiu mal aquela sensação de não ter escolha e não ter como sair dali.

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