Somos novamente raros.
Vive-se contrariado o regresso da fama dos brancos, quando tudo o que se quer, é o proveito. Os meus filhos reviram os olhos. Parece que estamos na Índia outra vez, pensam alto e suspiram. Estranhamos esta atenção e curiosidade que despertamos nos outros. Esperávamos uma relação unilateral, os curiosos devíamos ser nós.
Parece que ainda existem lugares, onde quem vive o dia-a-dia rotineiro, ainda se consegue fascinar pelo que o rodeia. Nem todos estão mortos dentro dos horários das 9 às 18h. Ainda há lugar para a esperança, afinal. Hoje, aqui, ponham os olhos em nós.
Perguntamos o que fazem as pessoas com todas estas fotografias, que tiram de nós. Dizemos a brincar que, se calhar, vamos parar num fundo de um écran qualquer, ou num grande poster em cima de uma cama de casal. Um dos turistas chineses que nos rodeia, reflex na mão, acha a ideia boa. E tira mais uma foto, sem avisar. Devo ter ficado com a boca aberta e um olho fechado. Devia tirar mais uma, eu mereço uma nova chance. Caramba.
Seguem uma guia vestida a rigor, nas ruas de Dali, mas param para nos observar. Querem viver esta experiência. Interessam-se de perto por nós. De muito, muito perto. Acentuam as mínimas diferenças físicas que existem entre uns e outros. Penso em Marco Polo e em tudo o que não mudou. Começo a ver e a viver com olhos e vontade de privilegiada. Tudo vai mudar. Isto ainda não. E aqui estou eu. Agora.
E os olhos azuis da minha filha, que são iguais aos da mãe. E as pestanas do meu filho, e a barba do francês. Não sou fisionomista, não vejo parecenças, nem diferenças. Entre a senhora chinesa que me quer tirar uma fotografia e eu, não há maior diferença física do que entre eu e a minha melhor amiga portuguesa. Quem vê a humanidade pelo prisma da raça diz que sim. Fazer o quê ? Sorrir.
Say soy cheese.
Os meus filhos fogem a correr. Estão fartos. Os turistas riem e tentam tirar uma ultima fotografia. Coitados dos Beatles.
A velha cidade parece saída directamente dos álbuns do Tintin ou dos filmes de Ang Lee. Está tudo tão restaurado, que me tenho que lembrar constantemente que isto não é a Disneylândia. Estamos à procura de algo, de outra sensação. Fugimos das ruas principais com os bares de cerveja americana e snooker, dos cafés com cupcakes e dos MacDonalds, vamos ficar alérgicos à cultura ocidental no final desta viagem. Vai ser bonito.
Tinha lido na net, um debate completamente sem interesse sobre qual seria a mais bela, se Dali ou Linjiang. Ocorre-me, ocasionalmente, perguntar-me porque passo tanto tempo à frente do computador.
Começamos o dia a aprender como se escreve hotel em chinês, mas rapidamente percebemos que não vai ser assim tão fácil, existem caractéres enigmáticos para hotel, albergaria, hostel, para hospedagem. Para não falar das casas que suspeitamos serem hotéis, mas que não afixam nada à porta. Como não queremos seguir o Lonely Planet, nem conselhos de ninguém em geral, para não arriscarmos acabar num retiro de turistas ocidentais, damos por nós a entrar em restaurantes, casas particulares, casas de massagens e a perguntar se têm quartos familiares, num mandarim que vos poupo. Parece ser este o preço a pagar por se querer fazer as coisas à nossa maneira. Os miúdos preferem não entrar, fazem apostas e riem-se muito com os resultados.
Sinceramente, nem sempre tenho a certeza da utilidade das viagens intergeracionais.
Longe de Huguo road, a rua dos estrangeiros, encontramos uma casa antiga, e não tão bem preservada assim, com uma grande porta aberta. O jardim cresce, mas apenas porque tem boa vontade, as cadeiras estão desarrumadas e há ferramentas de jardim e bricolagem a enferrujar. Mas há também um simpático ser humano, nascido em Chengdu, que sabe falar inglês, nos convida a beber chá verde, promete um nome chinês aos meus filhos e insiste que não podemos recusar o seu convite para o jantar familiar. Presumimos que estamos num hotel e chamamos os miúdos, essa geração vindoura, que entretanto ficou, de fora sob pretexto de guardar as bagagens. E verificar o resultado das apostas.
Não vou estar com meias palavras, porque adoptei uma postura de deslumbrada e tento não ter vergonha de tanta facilidade das emoções e satisfações. Sou uma pessoa cheia de pontos de exclamação nos finais das frases. Apaixonamo-nos pelos telhados, pela desordem e pelo inglês deste chinês. Tão precioso o inglês, depois de um dia inteiro sem perceber nada o que se passa à nossa volta.
Os meus filhos afirmam imediatamente nunca mais querer sair do pé do grande cão Xiong Xiong, que quer dizer urso. E o francês lembra-nos que os bisavós da Bretanha tinham um cavalo a que chamavam coelho e uma vaca a que chamavam cão. Se isto não são razões para se apaixonar por pessoas, por gerações e por povos...
Sentimo-nos bem-vindos, sentimo-nos em casa. Estamos mesmo à vontade, passados apenas cinco minutos. Apetece-me descalçar-me. A hospitalidade chinesa resulta.
A China vai esquartejar, a sabre frio, um a um, os preconceitos que me foram entregues quando anunciei, entre amigos e outros viajantes, que vínhamos para aqui. Vai ser um massacre. Todas as ideias feitas caíram no primeiro dia.
Algumas levantaram-se no dia a seguir.
Sunny, o chinês simpático de Chengdu que fala inglês, cumpre as promessas que faz. Sentado na mesa do pátio da casa, reune-se com um casal que não sei o que está ali a fazer, mas o que é facto é que está sempre ali, de bem com a vida, e discutem seriamente acerca do futuro dos nomes dos meus filhos. Numa folha escrevem, apagam, voltam a escrever, discutem. Quase que parece que é algo sério. Provavelmente é. Os meus filhos estão ao lado, com um ar muito comprometido, como se fossem entrar numa seita ou numa juventude partidária. Noto agora que sou dada a pleonasmos.
No final, todos parecem satifeitos: tenho um filho que agora se chama Long Fei Qiong e uma filha Long Wu Meng. Sunny, que na realidade se chama Wang Hui - deixemo-nos de facilidades - explica-nos tudo, não há que ficar preocupado. Long quer dizer dragão, que por motivos evidentes, que me escaparam, parece ser apropriado aos dois e depois Fei Qiong quer dizer voar e forte, que é o que um homem deve ser, deve acreditar que pode voar e deve ter força. Mas já a mulher não precisa de nada disto - aqui começo a olhar para o céu - porque o homem já está lá - aqui começo a agarrar numa pedra metafórica e estou pronta a lançar. Wu Mei, significa dançar e sonhar, o que é até bastante salutar, não fosse o carácter meramente decorativo. A minha filha aceita de bom grado o nome e até diz obrigada, afinal, tem sido bem educada ao som e moral dos filmes e das histórias - que recebe de outras pessoas que não os pais, limpo a minha reputação, que é importante - em que o herói é quase sempre um rapaz.
Protesto, mas apenas recebo em troca um sorriso, o que está feito, feito está. Os meus filhos nunca mais mudarão de nome e eu bem que posso deitar-me ao chão e esbracejar à vontade. Opto por uma atitude digna.
A dona da casa preparou-nos um jantar copioso, dizem-me que foi ela que preparou tudo sozinha e eu contabilizo as horas na cozinha. Duas clientes chinesas são também convidadas, mas dizem-lhes a brincar que têm que trabalhar. Sempre numa amena brincadeira explicam-lhes que a cozinha fica no andar de cima. A rir elas vão e nós preparamo-nos para ir também. Mas as regras são para cumprir. Uma coisa é ser-se chinesa mulher solteira. Outra coisa é ser-se homem, ponto. Ou mulher estrangeira "casada", ponto e virgula e reticência. Protesto. Respondem-me com um sorriso. Bem posso descabelar-me, partir os pratos todos, que a regra não vai ser quebrada. Opto por não ir a lado nenhum, cruzo as pernas delicadamente. E sorrio. Se o meu eu com vinte anos me visse agora, morreria de vergonha. Aos quarenta anos, sei que com uma cerveja tudo passa. Gritarei mais tarde, numa discussão no facebook, pelos ideais feminisitas.
Bebemos cerveja. Não como se fosse algo natural, agarrar no copo e levá-lo à boca de cada vez que nos apetece. Isto não é uma rebaldaria. Bebemos quando o dono da casa bebe e o nosso copo deve estar sempre mais em baixo do que o dos outros. Chama-se a isto respeito, senhores. Sendo que todos e cada um de nós é o outro de alguém. A dado momento deixamo-nos de tretas e bebemos. Mas à próxima repetimos. A cerveja é fresca e com pouquíssimo álcool, mas todos parecemos querer ficar bêbados, por isso, as latas de cerveja sucedem-se sem fim. Rimo-nos muito, principalmente quem não percebe a língua que na altura se está a falar. Estamos sempre servidos quando estamos bem connosco. Há estrelas no céu. O cão nunca mordeu nos meus filhos e a vida na China parece-me verdadeiramente aquilo com que sempre sonhei. Mas nem à quarta cerveja acreditei realmente no que sentia.
Alguns kempei depois e começa-se a falar de casamento.Wang hui, que em português se diz Rei da Luz - os pais queriam que tivesse um caminho luminoso, enquanto que eu apenas quis que os meus filhos tivessem o som "ia" no seu nome, como pode ser fútil uma mãe ocidental - vai-se casar em Outubro. Uma grande festa de um dia inteiro com muitos pratos de comida, elucida-nos.
Diz-nos que vai ter que trabalhar muito quando acabar as férias em Dali. Tem que juntar dinheiro para comprar uma boa casa, um bom carro, não quer um carro qualquer. Apenas assim merecerá uma mulher bonita. As mulheres bonitas querem vidas caras. Pergunto-lhe se valerá a pena o esforço, se não seria preferível uma mulher feia e uma vida fácil. Sorri. Uma mulher feia está fora de questão. Não quer uma mulher feia. My god ! Diz com um sotaque de Oxford, tenho a impressão que aprendeu isto num filme, e leva as mãos à cabeça. Insisto e tento uma rasteira, e uma mulher inteligente ? Não é preferível uma mulher inteligente ? Mas a resposta não se deixa levar pela cerveja engolida : todas as mulheres chinesas são inteligentes. O dono da casa salva-me e leva o copo à boca. Posso finalmente beber. E bebo muito.
Wang continua, diz-nos que não gosta de trabalhar, que prefere a vida fácil e lenta de Dali. Concordamos todos e bebemos juntos. Kempei. Gosta de acordar às 10h e sentir-se em família e comer e rir. Kempei a isso, companheiro. Mas a vida fácil vai acabar daqui a 4 dias. Vai trabalhar em Chengdu, já tem 33 anos e quer a vida que sonhou, e para isso, está disposto a abandonar a vida que gosta.
Kempei, se não há outro remédio...
...
No jardim da cidade estudamos a nossa primeira lição em mandarim: contar até 10. Sozinhos tentamos memorizar as palavras, os símbolos e os gestos que os nossos companheiros de sorte e refeições nos tinham ensinado na véspera.
Estamos rodeados de mesas de seniores a jogar ao xadrez chinês. O meu filho, memorizou tudo muito antes do resto da família, afasta-se e aproxima-se do jogo da mesa do canto. Eu digo que também memorizei e antes que alguém queira verificar, vou para o pé de um grupo de reformados sem reforma, que estão com a rádio ligada. Ou são todos surdos ou muito tolerantes. Vinte rádios com volume no máximo, todos sintonizadas em estações diferentes, fazem-me questionar a liberdade de escolha como valor absoluto e universal.
Olham para mim enquanto passam, uns dançam, outros não. Todos me sorriem. Deve ser um bom lugar para passar a terceira idade. Faço contas mentais para calcular quantos anos ainda me faltam. Não tantos assim.
Wang explica-nos mais tarde que quando se casar com o trabalho, com a casa e com a mulher, vai dizer aos pais para irem morar com ele. Ele é o irmão mais velho e é isso que tem que fazer. Os pais trataram bem dele. Agora ele vai tratar bem dos pais. Parece justo. E além disso, não quer ser apontado pelos vizinhos como um mau filho. My god ! repete. Calo frases feitas sobre dar-se demasiada importância ao julgamento dos outros. My god ! repetiria Wang.
Os senhores do jardim parecem ter filhos que foram muito bem tratados quando eram pequenos.
...
A beleza é muito importante para os nossos anfitriões. Os meus filhos são muito elogiados pela sua aparência. Um homem que não fala inglês mostra uma frase no écran do seu smartphone ao Francês a elogiar-lhe a barba. Ninguém diz nada sobre a minha aparência, nem mesmo no dia em que fiz esforços com o meu cabelo. A China é um pais muito duro, os meus amigos tinham razão.
Este texto poderia ser muito mais rico e profundo se eu tivesse percebido mais do que um terço do que me diziam e do que se passava à minha volta. Quanto tempo é preciso para se perceber o mínimo de uma conversa em mandarim ? Sonho com grupos de conversa na Chinatown em Paris e logo percebo como sou alguém de muito razoável. o que me apetecia era viver na China. Largar para sempre o que deixei temporariamente. Ser chinesa em Dali, acordar todos os dias depois das 10h, a seguir a uma longa conversa na noite anterior. Mas penso em compromissos em Paris. Noutras cidades chinesas, contam-me a vida começa muito cedo. Com o sol, as pessoas acordam, começam a correr de um lado para o outro. Oh, my god ! exclama Wang, metendo as mãos à cabeça.
Oh, my god ! diz mesmo a minha boca descrente.
...
No jardim da cidade estudamos a nossa primeira lição em mandarim: contar até 10. Sozinhos tentamos memorizar as palavras, os símbolos e os gestos que os nossos companheiros de sorte e refeições nos tinham ensinado na véspera.
Estamos rodeados de mesas de seniores a jogar ao xadrez chinês. O meu filho, memorizou tudo muito antes do resto da família, afasta-se e aproxima-se do jogo da mesa do canto. Eu digo que também memorizei e antes que alguém queira verificar, vou para o pé de um grupo de reformados sem reforma, que estão com a rádio ligada. Ou são todos surdos ou muito tolerantes. Vinte rádios com volume no máximo, todos sintonizadas em estações diferentes, fazem-me questionar a liberdade de escolha como valor absoluto e universal.
Olham para mim enquanto passam, uns dançam, outros não. Todos me sorriem. Deve ser um bom lugar para passar a terceira idade. Faço contas mentais para calcular quantos anos ainda me faltam. Não tantos assim.
Wang explica-nos mais tarde que quando se casar com o trabalho, com a casa e com a mulher, vai dizer aos pais para irem morar com ele. Ele é o irmão mais velho e é isso que tem que fazer. Os pais trataram bem dele. Agora ele vai tratar bem dos pais. Parece justo. E além disso, não quer ser apontado pelos vizinhos como um mau filho. My god ! repete. Calo frases feitas sobre dar-se demasiada importância ao julgamento dos outros. My god ! repetiria Wang.
Os senhores do jardim parecem ter filhos que foram muito bem tratados quando eram pequenos.
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A beleza é muito importante para os nossos anfitriões. Os meus filhos são muito elogiados pela sua aparência. Um homem que não fala inglês mostra uma frase no écran do seu smartphone ao Francês a elogiar-lhe a barba. Ninguém diz nada sobre a minha aparência, nem mesmo no dia em que fiz esforços com o meu cabelo. A China é um pais muito duro, os meus amigos tinham razão.
Este texto poderia ser muito mais rico e profundo se eu tivesse percebido mais do que um terço do que me diziam e do que se passava à minha volta. Quanto tempo é preciso para se perceber o mínimo de uma conversa em mandarim ? Sonho com grupos de conversa na Chinatown em Paris e logo percebo como sou alguém de muito razoável. o que me apetecia era viver na China. Largar para sempre o que deixei temporariamente. Ser chinesa em Dali, acordar todos os dias depois das 10h, a seguir a uma longa conversa na noite anterior. Mas penso em compromissos em Paris. Noutras cidades chinesas, contam-me a vida começa muito cedo. Com o sol, as pessoas acordam, começam a correr de um lado para o outro. Oh, my god ! exclama Wang, metendo as mãos à cabeça.
Oh, my god ! diz mesmo a minha boca descrente.
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Percebemos mais tarde, que passamos as noites com a juventude dourada chinesa. A que estudou, que viajou, a que compra Louis Vuitton nos Champs Elysées, a que fala fluentemente inglês. Daqui a dez anos muitos chineses vão ser ricos, discute-se novamente a beber a cerveja que não embebeda. A China vai mudar. Ainda mais. O mundo vai ser outro.
Joy tem 25 anos e viveu em Beijing durante quatro. Diz que a mudança é demasiado rápida. Quando saiu não reconheceu a cidade em que tinha chegado. Uma outra cidade. A China vai ser como Beijing.
Mas todos estão de acordo com algumas reservas : nem todos vão conhecer esta abundância. Há sempre quem fique de lado. Os agricultores das montanhas ganham o equivalente a 700 euros por ano. Uma mala Louis Vuitton sem as taxas de importação.
Joy confessa à segunda cerveja que nem tudo é alegria, na sua vida de mulher emancipada da nova China. Os pais pressionam-na. Tem que se casar. 25 anos é tarde para uma mulher chinesa. E ela não encontra marido. Nem quer saber. Quer viajar, trabalhar como eu também queria aos 25 anos.
Apesar do peso das tradições e da família, Joy é um nome apropriado, foi ela quem o escolheu quando aprendeu inglês na escola secundaria. Joy podia ser uma de nós, a crescer num mundo diferente. Num mundo que pensa que a vida é demasiado pequena para que caiba tudo. Onde se tem que fazer escolhas, onde não se pode escolher tudo. Obedecer a regras, pagar e gastar-se.
E gastar-se.
Wang Hui comenta mais tarde na noite, quando ficamos sozinhos, que muito provavelmente a Joy nunca ira encontrar um marido chinês. Uma boa mulher não é assim. Wang prefere uma mulher que cuide dele, gentil, que cuide dos seus pais. Sinto uma estranha simpatia por Wang, na verdade, nunca tinha conhecido um misógino tão simpatico. Fico satisfeita por não morar perto dele, de certeza que se continuássemos a falar, o tom iria vertiginosamente azedar. Esta é uma das muitas razões que me levam a gostar de viajar sem cessar. Acumulo amigos, mesmo que uma parte deles sejam potenciais inimigos. O mundo é mais fácil de engolir quando não se fica muito tempo focado em questões essenciais e outros pormenores.
...
Decidimos incluir Chengdu no nosso itinerário, quando sairmos da província de Yunnan. Coincidência ou não todas as pessoas de que gostamos são de Chengdu. Avisam-nos que existe apenas algo a que temos de fazer atenção : a comida é muito picante em Chengdu. Como se a agressividade das especiarias, determinasse a doçura no carácter.
Talvez as educadoras que colocam piri piri na boca dos mal comportados, afinal tenham um fundo de verdade psicológica, mesmo talvez filosófica. Decido mudar o meu modo de vida, vou aderir ao chocolate com pimentos padron assim que chegar a casa. E depois dizer asneiras de propósito.
...
Pode-se, com muita razão, especular a dada altura, sobre quantas mais linhas escritas em Dali, vai ser preciso ler, para se ler algo sobre Dali.
Acontece que nem sempre a viagem, e o que nos fica dela, é o que se espera. Isto todos pensamos que sabemos, mas uma vez vivido parece que é diferente. Como se fosse de admirar a confirmação de uma teoria que apenas tivesse sido escrita no quadro. Einstein deve saber do que estou a falar, Coitado. Coitado dele e dos habitantes de Hiroshima.
Não sei se sei muita coisa sobre Dali, para ser sincera. Pode-se saber muito de um lugar onde se passou. Posso-vos apenas contar-me dos meus dias em Dali. Do que ali ouvi e senti. Da cerveja que bebi.
Posso andar um pouco para trás, se isso ajudar em alguma coisa. Depois de sairmos de Kumming, onde apenas conhecemos o aeroporto onde não se fala inglês, chegamos a Dali. Ou a uma Dali. Acrescentaria, a "verdadeira" de hoje, se verdade não fosse um conceito tão abstracto. A estação de autocarros chegou ao terminus de uma cidade sem fim, que parecia um qualquer subúrbio de Lisboa, mas maior. Os mesmos prédios, as mesmas ruas por embelezar, as mesmas árvores por plantar. Agora, de repente, não me lembro se havia marquises. Talvez seja, esta a única forma de distinguir a arquitectura e urbanismo de uma e outra.
Desta Dali, apanhamos um mini autocarro, que se encheu de trabalhadores que queriam chegar a casa no final de um dia não muito entusiasmante. Também aqui as diferenças entre estes e os que usam a Transtejo, pertencem a quem tem gosto por detalhes. Meia hora depois chegávamos a Dali, a turística, a histórica, e para muitos, talvez até para mim, a "verdadeira".
Rodeada de muralhas, casas antigas restauradas, algumas com certeza feitas de raiz para compor melhor o vestígio do passado - afinal, para além dos fundamentalistas islâmicos, quem é que ainda se interessa por ruínas nos dias que correm ?
Mas não é sobre Dali que vou falar, apesar de Dali estar por todo o lado. Quero contar a falar sobre o que se passa na mesa das refeições da casa onde nos deixaram dormir, e fingir viver, durante umas noites. Dito assim, parece prepotente, estas linhas são minhas, faço com elas o que quiser. Mas, acreditem, é pelo melhor, que interesse teria ocupar este espaço a falar do que não sei ?
As refeições continuaram. Nos restaurantes, a pedir pratos que não sabíamos ao que iriam parecer ou saber. Na casa, a elogiar a comida, mas a apreciar mais a companhia. Não quero desmerecer os resultados culinários daquela que era sempre a que ia para a cozinha. Não quero vos deixar a ideia que não sou boa boca. Mas quando a companhia é assim, faz-se prioridades e estabelece-se importâncias.
Continuarei a falar das refeições em Dali, pois que até agora ninguém me impediu de tal. O dono da casa que pensamos ser um hotel é um soldado reformado. Não fala inglês e mostra com grandes gestos teatrais o que era a sua vida quando trabalhava. Percebemos que envolvia metralhadoras. Tentamos não mostrar que ficamos chocados. O nosso bom anfitrião. O que nos deixa beber cervejas o que sorriu quando lhe explicam o que dizemos.
A China, apesar de não gostar de guerra, tem que ser agressiva, explica-nos Wang. Ele sabe o que o mundo diz do seu pais. Quando atacamos é porque não temos escolha. Existe sempre escolha, mas desta vez não replico. O jantar esta maravilhoso e tenho receio de ser mal compreendida ou de haver erros na tradução.
Falamos do mundo em geral e do mundo chinês em particular. Wang repete uma frase-chave durante o resto da noite amo esta terra, mas não gosto deste pais. Precisa-se de dinheiro para tudo, precisa de dinheiro para viver, quando tudo o que quer é olhar para as estrelas, rir com os amigos, beber cerveja. Todos querem. Poucos o fazem. A razão permanece um mistério. Sabemos como ser feliz, mas depois perdemo-nos no caminho, e temos mesmo que comprar um carro e uma casa e mais uns sapatos. Somos mentes simples e distraídas, mesmo as que julgamos mais complexas. Todos partilhados imagens de sabedoria, mas meia hora depois estamos a comprar um novo sofá porque o outro estava velho. E a gastar o tempo que trabalhamos para ganhar esse dinheiro em algo vão. Sinto-me inteligente neste mês em que gasto apenas em experiências que me fazem feliz. Mas não tenho ilusões acerca da minha vida sedentária. Serei como os outros. Com sorte, talvez apenas um pouco menos.
Wang abriu um negocio com um amigo e o dinheiro do pai. Compa blueberries aos agricultores chineses e vende-os a preço alto a Singapura e a Hong Kong. Mas este ano correu-lhe mal. Culpa a corrupção. Informa-me que o presidente eliminou todos os corruptos, faz um gesto brusco perto do seu pescoço e agora acredita que tudo vai correr melhor. Gostava de ter acesso à campanha de propaganda que o convenceu disto. Wang é um crente, mas os seus olhos não estão fechados. Preferia que houvessem dois grandes partidos, uma boa oposição, seria mais equilibrado, acredita, mais justo e eficaz. Fico admirada com a sua franqueza, com a sua critica aberta ao governo. Assim como fiquei admirada por ver tantas famílias com vários filhos. A politica do filho único não é assim tão massiva como julgava. Não deixa de ser surpreendente que uma pessoa como eu, com acesso a toda a informação que esta na internet, a jornais e a revistas, tenha uma imagem tão errada do mundo que a rodeia. Questiono sobre o que andam as fazer os orgãos de comunicação social. Questiono-me sobre como escolho as minhas fontes de informação. Com a actual questão dos refugiados, por exemplo, não tenho mãos para contar o numero de debates a que assisti, onde o que mais salta aos olhos é a ignorância profunda do que se passa no mundo. Vivemos numa espécie de idade medieval, onde a informação não nos chega, mas estamos convencidos que percebemos como o mundo funciona. Como provavelmente os cavaleiros do século X.
I love this land, I hate this country. E sorri.
O chefe da sinal e bebemos todos ao mesmo tempo. Kempei. All in.
...
Rei da Luz explica-nos que a casa onde dormimos tem muito sucesso entre os turistas e viajantes chineses, porque é muito antiga, mais de dois séculos e é feita de madeira. Os chineses gostam muito de madeira, é um elemento natural. Torço-me na cadeira. Imagens das lojas dos chineses nos subúrbios de Lisboa invadem-me a cabeça, centenas e centenas de brinquedos e todo o tipo de objectos em metal correm de um lado para o outro. A etiqueta "made in China" por todo o lado. O que os europeus gostam. Não deixa de ser um revés da medalha divertido, esta coisa da ignorância mutua. Nem sequer entro em detalhes, o surreal parece-me demasiado enorme. Culpo a cerveja, sorrio e concordo que os chineses têm razão, a madeira é realmente um material nobre. E não falo sequer sobre o que vi no Laos. A sua desflorestação das florestas primarias por companhias chinesas, para satisfazer o seu bom gosto. Guardo todas estas informações para mim, agora para vocês.
Como é absurdo o mundo em que nos movimentamos. O jantar é novamente delicioso. O meu anfitrião explica-me que a galinha é do campo, da boa, nada como a galinha do KFC que se vende agora na praça principal. Parece convencido que os chineses têm bom gosto, mas lembro-lhe que o KFC também tem muito sucesso na China... Lembrando-me que a mesa onde tenho passado os meus dias não é a China e que provavelmente não sabe muito mais da China do que um europeu do outro lado da internet. Dificilmente sabemos e conhecemos o pais onde vivemos. Acreditamos no que queremos acreditar e procuramos provas junto a fonte e pessoas que nos vão confirmar o que queremos. Não sei como furar esta barreira do preconceito, um degrau mais que seja.
People are strange, acrescenta Wang e encolhe os braços. O anfitrião mostra-nos o copo para nos lembrar que é hora de beber. To strange people !
Apesar de haver nuvens no céu há estrelas que teimam em brilhar : à deles ! à nossa !
E com este remate metereologico me vou. Vamos todos, se quisermos, que a viagem, essa, continua.
Aqui vai o meu contributo de ocidental progenitora de mais uma criatura consumista pronta a acentuar as desigualdades sociais planetárias: nas papelarias.
ResponderEliminarParabéns ao rapaz, façam a festa toda que é devida e depois logo vens contar mais histórias, não temos pressa.
Eu estou muito excitada.
ResponderEliminarNão aguento. Conta tudo tudinho, com erros e caracteres chineses e com imagens desfocadas, mas conta. Hoje vá...tens o desconto: parabéns !
ResponderEliminar(nos quiosques deves achar....é realmente espantoso a capacidade de encaixe destas crianças)
Feliz ano novo T.
Acabei por comprar no supermecado. Mas aquilo é incrivelmente caro, o mundo enlouqueceu ?
ResponderEliminarUma colecção de cartas pokémon dava para um mês inteiro no Laos.
Gosto deste, continua, com ou sem calma, o que interessa é que contes tudo! : )
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