Por vezes, fico muito tempo sem
escrever, ou porque está tudo a acontecer ao mesmo tempo ou porque
não quero escrever o que estou a viver, sem antes escrever o que
vivi. Depois perdem-se os detalhes importantes e a reanimação nem
sempre é possível. A vida, essa, continua a dar-nos tudo o que acha que devemos ter. O bom. O mau. Nem tinha nada que ser diferente. Era o que mais faltava. Continua célere e tenho provas :
neste que é um dos anos mais vividos da minha vida, tenho vindo a
envelhecer mais do que julgo ser habitual. Talvez existam rugas
especiais para os anos especiais. A ver se as guardo. Os cabelos brancos, esses, são iguais aos outros. Também é verdade que viver assim,
cansa.
Não me estou a queixar.
Tenho raros dias em que paro. Estou do
outro lado do mundo e fico um dia inteiro no quarto com o ar
condicionado ligado. Aproveitamos para avançar no programa escolar,
lemos, vemos uns documentários, os miúdos brincam com legos, o
brinquedo mais improvável para se levar numa viagem assim.
Lá fora, a vida mostra-se ainda com mais
força do que é costume, desse lado do mundo. O barulho das buzinas
entra pelas janelas fechadas. O motor das motas. Os pregões de quem
vende mangas, durião (será assim que se escreve em português, o
nome deste fruto que cheira tão mal e que é proibido em todos os
autocarros e hotéis?) arroz, facas, cimento e, essencialmente, coisas
que não vamos saber, porque nestes dias não nos vamos levantar para
descobrir.
A minha filha fica feliz, tem sempre
projectos em mente e com esta vida movimentada nunca os pode
realizar. Hoje empenha-se na elaboração de um jogo de vídeo sem
vídeo. Desenha e corta personagens e acessórios. Ontem tinha que
desenhar todos os robots que estavam a viver na sua cabeça, havia
urgência porque eram cada vez mais. O meu filho progride mais do que
é suposto e desenvolveu uma paixão obscura pela matemática. No
outro dia, viajamos com um casal de professores primários que nos
avisou que ele sabia mais do que devia saber na primeira classe.
Isto é tudo tão absurdo.
Não escrevi aqui sobre muitos dos
sitios que visitamos e que nos marcaram. Tenho muitas historias dentro
de mim. E, tal como a minha filha, sei que há urgência. Eu sei.
Escrevo agora de noite, com todos a dormir, menos os mosquitos. Malditos. Estamos a viver numa casa em cima de estacas, numa praia quase
deserta da ilha-elefante da Tailândia. Estamos na época das chuvas, e ontem trovejou tanto, com tanta força, que comecei a pensar se estaríamos a salvo no nosso bungallow de madeira e rede.
Ouço as ondas lá fora e
penso na minha mãe. Esqueço-me sempre de lhe dizer qualquer coisa
no dia da mãe. Posso alegar a confusão natural de quem vive em
França, onde o dia da mãe é noutro dia. Mas a verdade é que não
gosto deste dia. Nem de nenhum em especial, que existe para me lembrar
de algo que não me esqueci. Penso hoje na minha mãe, porque um dos
sons que ela mais gosta é do som das ondas a morrer na praia. Ela
vai detestar a palavra morrer. A minha mãe é a rainha dos
eufemismos. As ondas a sentirem-se um bocadinho mal na praia. As
ondas a virem beijar a areia salgada. As ondas a acariciarem a terra. Sei que
ia gostar desta temperatura da água. Demasiado quente para mim. Filha ingrata do continente africano. Lembro-me de me ter contado da primeira vez que foi à praia em
Portugal, numa praia a apinhar na linha. De ter corrido para o mar e de ter mergulhado, com
confiança, num mar tão gelado como ela nunca tinha imaginado. A
minha mãe merece este mar morno.
Mas sou eu que estou aqui. A fazer tempo para ir para outro lado.
...
O Francês não é o homem que eu
pensava. Podem dizer que são detalhes. Mas ele não é o senhor
perfeito que eu pensava que era. Nem tão racional. Uns vizinhos
nossos fizeram uma volta ao mundo antes de se casarem, para terem
certezas. As certezas não existem, sabemo-lo bem. Mas não deixa de
ser uma ideia séria. Hoje sei que podemos viver uma vida inteira com
um homem e não saber quem ele é. Podemos viver a vida inteira e não
saber quem somos. Viajar não é a solução, nem foi à procura de
sentidos para a vida que decidi viver esta experiência. Mas hoje julgo conhecer-me um bocadinho melhor. Os defeitos, os defeitos. E o "meu" Francês. Ninguém é de ninguém, eu sei, eu sei.
Na outra noite acordou-me. Tínhamos que
ir à China. Comer como os chineses. Ir à casa de baho como os chineses. Falar alto como os chineses. Ser chineses. São tantos. Mais quatro, ninguém ia notar. Tinhamos que ir à China. Melhor, ir para a China. Não como tínhamos pensado, mas de outra forma, mais
tempo, mais intenso, ele ia ensinar-nos o que sabe de mandarim, uma
imersão total. E eu, que era assunto que podia esperar pelo pequeno
almoço, que devia ter tido um sonho, que se acalmasse e me deixasse
dormir. Este tipo de situação nunca aconteceu na vida que
levamos quando não somos vagabundos. Supostamente eu é que acordo a meio da noite, eu é que
sigo a lua e as hormonas, eu é que tenho vipes e cenas maradas. Eu é
que tenho mesmo que fazer uma coisa. E ele o conselheiro, o ponderado,
os quadros excel, os contratos com o banco.
A liberdade tem com cada coisa.
Corremos o Cambodja de Este a Oeste, paramos em Phnom Phen e em Siem
Reap, senão nunca nos iríamos perdoar. Prometemos voltar com mais
calma, quando esta voltasse. Que agora não podia ser, havia uma
loucura a satisfazer e, desta vez, a culpa não era minha. Abençoada
culpa. Bendita graça. Naquela noite, o Francês teve um arrepio, esta nossa viagem vai acabar dentro de meses. Depois é o escritorio novamente, e o tempo a passar e a vidinha a comandar. Temos que mudar o que estamos a fazer. Rapido. Já. Ontem. O stress, o stress. Como se na outra vida, na vida trabalho-casa, nunca se podesse ter dado ao luxo de ser louco. A louca era eu. A livre. A que não tinha emprego, nem horario. A que podia sentir angustias e vipes e sonhos e simular depressões. Ele tinha que ser de outra forma. O senhor Atlas.
A liberdade devia ser obrigatoria, é o que vos digo.
Uma fronteira caótica depois. Torres Khmers,
trocadas pelo retrato do rei da Tailândia e estávamos novamente de
Banguecoque. Frente à Embaixada da China. Todos os documentos e
explicações. O trajecto que vamos fazer. Nos, que nunca sabemos com
mais de uma semana onde é que vamos. Com mais de um dia. Por vezes,
com mais de uma hora. Tudo certinho, desta vez. A provincia de Yunan, os Himalaias, O Shangri-la. E depois Pequim e Xiam. Deviamos ter planeado de outra forma. um ano inteiro na China. O bilhete de avião comprado. E
agora é esperar. A roleta do visa da China. Os outros turistas de longa duração tremem quando falamos do visa da China. Uma holandesa viu-se recusada, sem apelo, nem agravo, teve que pagar os custos de anulação do bilhete, dos hoteis, perder uma semana para mudar de planos.
Por isso, não sei em que pais vou
viver para a semana que vem. A espera em Baguecoque tornou-se
insuportável, ou um bocadinho chata, por muitos arroz colantes com manga que comesse. Viemos
nadar em mar morno, numa ilha em baixa estação. Lutar com os elementos vai nos fazer mudar de ideias. Chuva torrencial. Trovoada. Mosquitos.Tubarões-baleias.
Estamos, portanto, oficialmente em banho Maria.
Oh pá, tão bom!
ResponderEliminarPhu Quoc? Esse lugar de pensar na vida?
ResponderEliminarNão, essa é do lado do Vietname. agora estamos em Koh Chang, do lado da Tailândia.
EliminarEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderEliminarE perdia isto ? Nem pensar... O meu problema não és tu, sou Eu ;-)
ResponderEliminar*
Estou desejosa de descobrir se o pudim monta ou se deslaça, não te distraias com a temperatura do banho maria.
ResponderEliminarBom, mas não desviando a coisa do ponto central do meu comentário: todas as mães são rainhas do eufemismo. Talvez isso faça de nós, afinal, povo do eufemismo, que não pode haver tantas soberanas. Não interessa. Se não andas a estudar pelo manual do eufemismo porque pesava na mochila vê lá se arranjas um curso por correspondência, ou assim.
ai...tens de escrever mais vezes....gosto tanto de ler....podem ser só os triviais...em textos despachados ou despejados a correr...e acreditem que talvez um dia vos vá saber mesmo bem voltar aqui a reler...e quando eles crescerem? já pensaram para além das fotos em auxiliadores de memórias....isto são tudo momentos para não ficarem em rascunho muito tempo ;)
ResponderEliminarIsto vai deixar-me a pensar todo o dia....que bom é ler-te (salvo seja)!
ResponderEliminarHà tanto tempo que nao vinha aqui...estou impressionadissima com o que estou a ler. Parabéns pela coragem de fazer diferente .
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