26.4.15

Voltarei mais tarde para alinhavar

Estou na Conchichina.
Acho que isto quer dizer que estou muito longe de casa, mas não sei onde fica a minha casa. Neste momento, como em tantos outros, não sei. Perdi o fio, não tive cuidado, um dia tinha que acontecer. Amigos e familiares perguntam-me incessantemente se estou com saudades, se não sinto falta de nada. Tenho muita vergonha de lhes dizer a verdade. Não sinto. Saudades. De nada. Baralho a pontuação, coloco pontos finais, esqueço a gramática. Quero que não se perceba à primeira, ou que pelo menos, haja uma margem para duvidas. Sou uma ingrata. Eu sei. Depois de tudo...
Sinto-me em casa, quando não tenho casa, nem carro, nem frigorífico, nem armário, nem mesinha de cabeceira, nem papel higiénico. Se agora sair deste quarto de hotel e seguir a rua até ao fim, não sei onde vai dar. Não sei quem mora no quarto ao lado. Não sei sequer se mora ali alguém. Não tenho a língua certa. Pessoas dirigem-se a mim e falam-me, não percebo nada, não posso responder. E por mim tudo bem. Não tenho o cafézinho da manhã, nem nenhum livro para ler, o talho em frente é na rua e não usa frigirifico, vê-se moscas a rondar a carne. Em casa, repito. E é tão estranho. E é tão natural.

...

Temos viajado algumas vezes com outras famílias que também estão a fazer uma longa viagem. Dois anos, 9 meses, um ano, o tempo que o dinheiro esticar. Outros franceses, australianos, israelitas. Dizem-me que, às vezes, as crianças ficam nostálgicas. Perguntam se podem voltar para casa, querem os amigos, os avós, os primos e os vizinhos. Os meus filhos não.
O que é bom. O que é mau. O que é alguma coisa, com certeza.
Não temos raízes. Tanta emigração, tantas gerações a viver noutros países, noutros continentes, tanta andança deve ter danificado o nosso ADN. Estamos em casa, na Conchichina. Sentados, como se estivéssemos num sofá.
Venham-nos visitar. Ofereceremos café vietnamita com um fundo de leite condensado.

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Uma das familias que conhecemos está agora no Japão, outra na Birmânia e duas no Nepal. Sigo-os no facebook. Por isso, passeio-me em Saigão e penso em Katmandu. Há três dias atrás, pensava que se calhar, deviamos mudar de planos novamente e voar para Katmandu. Toda a gente nos mandava para Katmandu. Que linda palavra : Kat man du. Duas amigas voaram para lá de férias e outra esteve lá há três semanas. Vai para o Nepal, dizem-me. Vamos, pensava.
Hoje penso e vivo um pouco em Katmandu, nas fotos que vejo no écran do computador que uma das famílias vai enviando : os prédios que vieram abaixo, as fotografias à frente da torre, onde estavam sorridentes, e agora, ao lado, a fotografia do que resta da torre, ninguém a querer posar ao pé dos destroços. As crianças a ver desenhos animados até às 2h da manhã, porque têm medo de dormir. E a outra família, com o mural do facebook cheio de angustia e pedidos de informação. Partiram numa caminhadas e ainda ninguém tem boas noticias. O "ainda" está ali por tem que estar.
Caminho em Saigão e penso em Katmandu. E só espero que esteja tudo bem.

...

Não tínhamos ainda ido a nenhum museu de guerra. Mas a guerra tinha vindo até à nossa viagem. As crateras de bombas nas ruínas de My Son, as historias sobre as estatísticas de guerra no Laos : 600 bombas por cada laociano, que nunca fui confirmar, seja qual for o verdadeiro numero, foi sempre um exagero. A brochuras dos museus e das prisões nos tours turísticos. E as propostas de diversão nos locais desmilitarizados para quem quer brincar às guerras. Os bares com snooker e decorados com helicópteros. O artesanato feito com restos de bombas.
Temos contornado a questão. Ou porque é demasiado explicita, ou porque não queremos passar uma imagem de guerra através de uma brincadeira. A guerra não é, nem nunca será uma brincadeira de adultos. Por muitas caras felizes de turistas a posarem à frente de bombas, que tenhamos visto ao longo destes meses.

Não fomos ao museu de guerra de Ha Noi, onde mostram os prisioneiros de guerra a ser tratados com se estivessem no Club Med. Nem deveremos ir aos museus no Cambodja, onde a realidade é mostrada sem o filtro que, quem nunca viveu em guerra, precisa para conseguir suportar a verdade insuportável. 
Estivemos ontem no museu de memorias da guerra, em Ho Chi Minh, que toda a gente no sul continua a chamar de Saigão. 
A guerra no Laos, no Cambodja e no Vietname, continua a chamar-se apenas de guerra do Vietname. 
E o fim da guerra, afinal, ainda não se encontra fechado. A guerra não acaba assim. Nos templos de Hoi An, pedia-se ajuda para tratar os que ainda sofrem com o agente laranja. No museu, homens e mulheres deformados ouviam musica e tentavam vender artesanato. 
A guerra não acaba assim, como nos tinham dito.


E os meus filhos já não querem brincar aos soldados. 


E eu quero ler outra vez "O amante" e ver por onde andava Marguerite Duras. E sentir novamente o que senti quando tinha dezoito anos, naquela sala do cinema Nimas.

5 comentários:

  1. (engulo várias vezes a seco, por entre suspiros e outros nós na garganta. por isso desculpa a gramática soluçada)
    Juro que compreendo tão bem que não sintas saudades nem falta de nada. Tens tudo e mais alguma coisa e tenho -me perguntado várias vezes (desculpa falar nisto agora) como vai ser conseguir voltar. Os teus filhos, caramba....que Vida estão eles a ter ! Aliás, eles sem saberem ,também me estão a dar várias lições de história e sobretudo de Vida. Eles e tu. Por mim , ficariam, para sempre a dar voltas ao mundo. Obrigada e obrigada. Quando voltares espero conseguir agradecer-te por esta dádiva.

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  2. Também gostava de compreender melhor isso das raízes. Acho que há pessoas mais nómadas do que outras, pronto. E no vosso caso, pelos vistos, calharam (?) ser todos nómadas.
    Vai andando, até ser possível, assim como assim já nem existe Nimas, nem nada.

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  3. sou uma visitante pontual dos teus 'acidentes' (já não vinha aqui há alguns meses) e hoje fiquei a pensar em ti... quais são os teus sonhos? o que procuras?

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    1. Gostava muito de vir a ser uma pessoa lucida. E não me sentir tão ignorante em relação a tantos assuntos que considero importantes.
      Gostava de não perder tempo com situações ou habitos que não me levam onde eu quero. Perceber o que se passa à minha volta. E aproveitar a vida enquanto posso. Dar importância às pessas que são importantes.
      Enfim, aquele artigo viral da enfermeira que diz quais são as ultimas palavras dos pacientes terminais, por muito inventada que possa ser, tocou-me. Podia ter sido pior, podia ter-me dado para os gatinhos lol.

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