6.3.15

Não sou eu, foi Udaipur


Chiang Mai. Tínhamos entrado no wat chedi Luang, naquele templo mesmo à frente da entrada. Aquele, que fica ao lado da casa onde colocaram o bastião da cidade, e que tem um cartaz, onde se lê que as mulheres não podem entrar.
...
Nesse templo, entramos.
Uns vinte monges, cabelo rapado, vestidos de um tecido laranja estavam sentados, pés para trás, à frente das imagens do Buda. Entoavam afinados uma oração incompreensivel para os nossos ouvidos, ainda - e talvez para sempre - desabituados. O mais novo, acabado de entrar na adolescência, tinha olhado de esguelha para nos pela porta do lado, que eu vi. Tem o direito que haja que deve ter. Sentamo-nos no tapete azul, atrás de todos, e ouvimos um cão a ladrar dentro do templo. Um cão estava a ser cão e os monges continuavam a ser monges. Deve ser a isso a que se chama tolerância. O cão a coçar as pulgas e, ao lado, os monges a meditar. A tolerância faz rir os meus filhos. Portanto, deviam estar acostumados. Não sou nenhuma tirana.
Bolas.
Aproximo-me do Francês, que tinha ficado à porta a ver um detalhe. Uma senhora francesa está a falar com ele. Olhos brilhantes muito abertos, um sorriso quando nos aproximamos. Reconheceu-nos. Tinha-nos visto em Udaipur. Uma imagem maravilhosa. Estávamos sentados numa escada que acabava no lago, ao pôr do sol. As crianças estavam a desenhar o palácio em frente. Trop beau. Vous êtes magnifiques. A senhora tinha visto a perfeição na minha família. A perfeição existe la, onde a queremos ver, bem sei. Mas tão estranho querer vê-la numa família. Sempre tão certamente cheia de imperfeições e outras caracteristicas humanas. A senhora não viu a minha ma fé, a passividade agressiva do Francês, negada à exaustão, as explosões emotivas do meu filho, nem a extrema preguiça da minha filha, claro. Que não nos mostramos sempre no nosso pior ângulo. Mas podia ter desconfiado. Optou por ver o que queria ver. E falou-nos, como se fosse essa a verdade. Tão bizarra a verdade dos outros.
A minha verdade acerca dos outros ou dos sítios que visito, não o é menos.
Acerca de Udaipur, por exemplo - um sitio tão maravilhosamente imperfeito :
Era o principio de uma noite e tínhamos escolhido comer num restaurante com terraço perto de casa. "Casa". Por trás, as luzes do palácio da cidade, ainda a preparar-se para o ultimo dia do casamento multimilionário. Naquela noite, vinha a J.Lo actuar para os convidados e eu não ia dormir, ao som do let's get high. Detesto musicas que me dizem o que devo fazer, sobretudo quando estão num volume alto e eu estou a tentar dormir. Sentamo-nos para ler o menu, a minha obra literária preferida, por estes dias. E vemos um vulto, a contraluz, a saltar de um telhado para outro. Depois outro. Os telhados são distantes, o salto é espectacular. Já vi vídeos no youtube de jovens homens a fazer isso, lá nos States. Outro vulto, outro salto. Sentam-se e aproximam-se uns dos outros. São macacos com comida. Ou piolhos, que também se catam. E vejo a perfeição : um bando de macacos subiu à cidade para roubar a comida dos ricos sem pudor, numa terra que mostra a quem quer ver, a pobreza dos outros. Vejo a perfeição numa revolução, numa espécie de luta de classes entre espécies - porque a quero ver. Há muito tempo.
Vinte, trinta macacos. Daqueles grandes, magros, pelo branco, cara preta. Descem na nossa direcção. Juntos, organizados a descer da cidade. A roubar dos ricos, que os pobres não o fazem. E a classe média finge que também não. A revolução, como nos filmes ou nas minhas visões de perfeição mais loucas.
No final, acabam numa árvores perto do restaurante onde estamos. Comem. Comemos. A noite estava extraordinaria. O lago é magnifico. E todas as vidas nos parecem irreais. Compreendo a senhora francesa e a manipulação que se inflingiu. Não é ela, é Udaipur.

...

Mais tarde, o dono da casa onde moramos fala-nos da sua verdade, sobre os macacos e o cinema na Índia. Os macacos chegam todos os dias à mesma hora, comem-lhe as plantas na varanda e partem-lhe os vasos. A mesma varanda de onde escrevo a dar noticias à família e aos amigos - o único sitio onde apanho internet. São mais breves as noticias vindas de Udaipur, posso-vos dizer. Corro riscos de vida, para dizer à minha mãe que estou a ter uma viagem segura.

2 comentários:

  1. Não sei o que queres dizer com isso da tua família não ser perfeita. Sei é que neste momento gostava muito de estar num sítio manipulador como Udaipur. Acho que andamos todos muito necessitados de uma certa perfeição.

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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