26.11.14

Viajar não é chegar a qualquer lado


As informações, vagas e contraditorias, deram-nos espaço para escolher o que nos apetecia, sem pensar. Há quem chame a isto liberdade. Outros, ignorância. E eu tento não chamar a nomes a nada nem a ninguém, desde um certo recreio que me correu mal, na terceira classe.

Decidimos à ultima da hora entrar num colectivo, rumar a Villa Fatima e escolher um autocarro blindado que nos levaria a Rurrenebaque, que na realidade, se diz Zuzenebaque - para me dificultar a vida. Pneus de camião TIR. Alguns rasgos na carroceria, que devem fazer parte do oficio, calculamos, em baixo as letras a duas cores Tu aventura comieza. Um desenho de uma mulher semi nua, arco e flecha na mão, uma cascata, do lado esquerdo depois das janelas. Na parte de trás do autocarro, um Jesus Cristo. Mais compostinho. Uma luz a sair do peito.
Sentamo-nos a correr, que vai sair ahorita. Por um triz e tínhamos que esperar pelo dia a seguir. Muita suerte. Uma hora sem nenhuma explicação depois e o motorista colocava finalmente a chave na ignição. Ahorita mesmo.
Subimos a encosta de La Paz sem pressas. Os cães a correr ao lado e a ultrapassar sem esforço. Tinham-nos prometido apenas 18 horas de viagem. Começamos a fazer apostas. Os meus filhos são os mais optimistas, apenas três horas de atraso.
A juventude tem destas vantagens.

A primeira parte da estrada de la muerte foi arranjada, com o apoio do estrangeiro que culpabilizava a cada numero de mortos que lhes caia nas estatística. A primeira parte.
Depois são as obras e a falta delas. A estrada de asfalto e as pontes, que dão lugar ao caminho de terra, que se vai estreitando a cada passagem de autocarro. E existem muitos autocarros a querer passar. Pior, que passaram antes.

O lugar à janela, do lado da falésia permite ver a paisagem lunar, os que aproveitam estar longe de casa para ter sensações fortes e fazer a estrada da morte a bicicleta. E sobreviver, se for caso disso. Mas depois, quando a paisagem começa a mudar, as árvores a crescer, a estrada a ceder e a pertencer cada vez mais à natureza, podemos olhar para cima para ver o final ou o inicio das montanhas. Ou olhar para baixo, ver a terra que cai à passagem dos nossos pneus. Para a frente e ver uma nuvem de poeira deixada pelo autocarro à frente. Ou para trás e perceber que existem pessoas a caminha à beira, na estrada que o nosso autocarro deixou cheia de poeira.
E ir pensando, muito interrogativamente, a cada vez que viramos o pescoço, como é que isto tudo, ou seja o que for que me rodeia, é possivel. Se tenho mesmo a certeza que devia estar aqui. Quantas vezes me senti assim na Bolivia ?
Vim com os meus filhos, como agravante. Um universo de interrogações mais ou menos filosoficas se abrem aos meus olhos. Por muito que os queira fechar: a falésia.

Leio o que escrevi no caderno, no principio desta viagem. O espirito de aventura, o eu é que sei, não seguir o conselhos dos outros, o vento fresco na cara, a liberdade, a vida fora do sistema. Por vezes, parece que tenho dezasseis anos e que estou a ver uma publicidade da Coca-cola, nos anos oitenta e ainda não sei que existem obessos. Não faço ideia de como cheguei onde cheguei tendo aprendido tão pouco. Devo ter-me divertido muito na minha adolescência, com certeza, não me lembro de quase nada e muito pouco entrou. Não faço ideia como é que nunca me passou pela cabeça pintar o cabelo com agua oxigenada.

Paramos a meio. A rapariga à minha frente, que não aguentou as emoções fortes e não tinha crianças a cargo e obrigações sobre humanas de fingir naturalidade, estava levantada, o mais longe possível da realidade e com um riso nervoso que parecia conter o que se passava dentro de mim e dela. A solidariedade do viajante que se vê mais irresponsável e com a vida entregue a outros que não conhece. Diz-me que não podemos avançar, todos os veículos pararam. Saio para me certificar que os pneus do lado de fora estão todos dentro da estrada. Estão. Uma unha negra. Penso na nuvem de poeira. Quase acredito em milagres e compreendo seitas e religiões. O desenho de Jesus a olhar na minha direcção.
Um táxi pára à nossa frente, saem 4 turistas com uma garrafa de whiskie na mão e uma musica muito alta e muito, muito péssima. Ninguém reclama. Passei demasiado tempo em Paris, tudo me parece inadmissível, quero reclamar. Mas não sei como, nem a quem. Quero bater no motorista, na senhora que me vendeu os bilhetes, em mim, nestes turistas, noutros, em quem vende álcool, a quem vende carros, a quem não controla a estrada, a quem sabe que existem pessoas que caminham na berma da estrada e continua a conduzir como se de nada fosse. a todos o que fazem como se de nada fosse e a mim, outra vez.
Não bato em ninguém. Ganho um cabelo branco. Muito provavelmente é apenas mais uma experiência que se vive. Não merece histerismos de ordem maior.
Os meus filhos pedem para lhes tirar uma foto, no fundo uma curva com um camião mais longo que a experiência do condutor. Não passa. No passara, digo-lhes eu. Vinte pessoas estão a gritar instruções ao condutor. Avança, recua, deve estar a transpirar por todos os poros. A falésia.
Os homens urinam onde querem. As mulheres onde podem. E eu não sei o que fazer. Não faço nada. Aguento e junto-me às mulheres de riso nervoso. De fora, parece que nos divertimos imenso. E neste caso, é isso que conta.

11 comentários:

  1. Juro nunca mais me queixar do ziguezaguear das estradas transmontanas!!! Irra gente de coragem... 'isso' é uma montanha russa esculpida pela natureza!!

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  2. E quão longe da Europa é que já te sentes? Será possível ainda mais longe (bom, ainda falta o Pacífico todo)?

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    1. Na Bolivia longissimo. Outro mundo.
      Na Argentina, em Buenos Aires, mais perto do que quando estou em Lisboa.

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  3. Eu a ler isto, e a dar-me uma ataque, como me deu quando a minha filha disse que era giro descermos essa estrada de bicicleta. E quando mandou um sms a dizer "mãe! vou descer a estrada de la muerte de bicicleta! Se sobreviver, depois escrevo-te!"
    Vocês são é todos muito malucos.
    (Se me deixassem mandar, essa estrada só tinha um sentido - descer nos dias pares, subir nos ímpares)

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    1. Não percebi muito bem o que se passou connosco. Parece-me que a estrada que a "maluca da tua filha" desceu a bicicleta é a primeira parte da estrada que agora não se usa. Por isso, fazem-se estas excursões a bicicleta.
      Foi o que nos disseram e a seguir partimos do principio, que a estrada estava toda mudade e que era segura. A primeira parte. O pior é o resto. Se fosse eu a mandar os grandes camiões não a poderiam utilizar. Muitos fazem curvas a uma velocidade inimaginavel, com uma nuvem de poeira que não deixa ver nada. tudo bem, conhecem a estrada como a palma da mão, mas...
      (Na volta viemos de avião. Vês como somos pessoas pausadas e razoaveis?)

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    2. Sim, senhora: aprendem rapidamente com a experiência!
      (Nem perguntei à minha filha se fez o resto do percurso. Acho que prefiro não saber. A propósito: se fores ao Nepal, pergunta-me qual é a estrada onde o autocarro dela passou por baixo de uma queda de água, parou ali mesmo, e começou a ser arrastado para o precipício... Também não convinha muito vocês meterem-se nesse autocarro.)

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    3. Acjo que não. A estrada que as bicicletas fazem é a que fica perto de la Paz, para os lados de Los Yungas (a primeira foto).
      O resto da estrada fica muito longe para essas aventuras e seria verdadeiramente suicida, é apenas para carros (e para os desgraçados que vivem para esses lados e vão a pé...).
      Se calhar vamos ao Nepal, sim. Diz-me que estrada é essa. Ai !.

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  4. Ganhas UM cabelo branco? só UM?? Eu sabia que eras de outra estirpe.

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    1. Ahahahahahaha !
      Mas é verdade.
      (Infelizmente, ja aconteceram coisas muito piores durante esta viagem, que me devem ter dado muitos mais. Depois conto.)

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