16.1.14

Crónica de uma empatia crónica I


Se a minha casa estivesse a arder - se apenas pudesse salvar uma coisa - salvaria as minhas fotografias. A história da família, os meus pais jovens, o dia em que conheci o meu namorado, as fotografias dos primeiros dias dos meus filhos, do meu primeiro interail, das outras viagens, dos meus avós quando tinham 30 anos, dos Verões, da neve, dos amigos. Do tempo. Da vida. 
Não sei nada do que é o desespero. Olho para estas fotos nas paredes deixadas para trás e compreendo que não sei o que é perder. Uma casa. Anos a trabalhar. Sacrifícios. Noites sem dormir. A preocupação a roer os dias. Não sei do que é que trata este trabalho.
Venho de uma história de família difícil, no entanto. Sou de uma família de retornados que deixou quase tudo em Moçambique. Nunca se pode dizer que se deixou tudo, quando se vem vivo. 
Mas não sei na pele o que é trabalhar para nada.
Não sei o que é desistir. Não sei o que é não haver mais nada a fazer.
Não faço ideia do que é chegar ao senhor gerente e dizer : fiquem com tudo. Fiquem com todos os anos que fiquei até tarde no escritório para pagar esta prestação. Fiquem com todas as minhas segundas feiras de manhã. Com todas as horas extraordinarias. Com todas as horas no trânsito. Com todo o tempo que os meus filhos esperaram por mim. Fiquem com os meus sonhos. Os meus projectos. Fiquem com tudo.
Fiquem, também, com o meu futuro, que continuarei a pagar pelo que já não tenho. Pelo que vai ficar abandonado. Vazio. Pelo que vai ser vendido por tuta e meia. Uma gorjeta.
Fiquem com tudo. O que é meu, já não me pertence.

Foto de André Pais

29 comentários:

  1. Deve ser uma dor sem tamanho... Eu perdi o meu pai com nove anos, sei que a minha mãe comeu o pão que o diabo amassou para nos criar ( e não digo educar, porque estou a falar do mais básico, comida, cama e roupa lavada), sei o que é crescer à força, nunca me faltou nada, graças à minha mãe que sempre foi uma mulher de garra, mas sei a vida que poderia ter tido se o meu pai não tivesse partido tão precocemente... viver é muitas vezes difícil, mas reaprender a viver é muito mais...

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    1. Reaprender a viver nem sempre se consegue, outras vezes é possivel, mas as marcas ficam sempre. Individualmente, é preciso força. Mas a sociedade devia também estar organizada para apoiar nestes momentos de crise.

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  2. tenho medo disso, disso tudo que dizes: "Fiquem com todos os anos que fiquei até tarde no escritório (...) Fiquem com todas as minhas segundas feiras de manhã. Com todas as horas extraordinárias. Com todas as horas no trânsito. Com todo o tempo que os meus filhos esperaram por mim. Fiquem com os meus sonhos. Os meus projetos. Fiquem com tudo". Tenho medo porque acho que tudo isso que ainda dou já não serve de nada. Não vou ser promovida, mais bem paga, com sorte não serei despedida. E aí tenho medo de entregar também o futuro e continuar a pagá-lo "pelo que já não tenho". Empatia foi a que senti mais uma vez contigo, desta vez mais forte. Merda.

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    1. O grande problema desta situação é o desiquilibrio profundo entre as duas partes, de um lado uma familia endividada e do outro uma grande instituição bancaria. Numa altura de crise (pelo menos) devia haver um mediador forte a ver caso a caso, a negociar, a amparar, a dar alguma justiça a estes casos.

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  3. que texto brutal... até fiquei com um nó na garganta. e é brutal em todos os sentido. o texto. o tema. e claro, essa foto a acompanhar.

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    1. Esta situação é brutal e todos os nós na garganta são justificados.

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  4. Em Portugal está muito intrincada esta ideia de ter a casa própria, na geração dos meus pais todos sonhavam deixar uma casa aos filhos. É aquela ideia de ter um tecto protector para nós e para os nossos caso venham tempos difíceis. Só que os tempos difíceis vieram antes das casas estarem pagas e isso é um drama, o desmoronar de uma vida. E isto não é uma crítica da minha parte. Por muito que eu gostasse de ser mais desapegada também eu usufrui da facilidade de acesso a empréstimos para comprar a casa onde vive a minha mãe, sempre com a ideia de lhe proporcionar o seu tecto protector.

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    1. Muitos factores levaram as pessoas a comprarem casa, e bolas, estão no seu direito. Nem sempre, racionalmente falando, alugar é uma boa opção. Depende da vida que se quer ter, da mobilidade, das rendas e das prestações. Mas, é verdade que o acesso ao crédito foi mal gerido. Demasiado facil, demasiado tempo de divida, mal calculado o esforço a fazer. Havia quem ganhasse com este sistema.
      O que me enerva, neste caso especifico, é a falta de apoio que estas familias estão a ter. E quem diz empréstimos para habitação, diz créditos pequenos. São mal informadas dos riscos, tudo é facilidade e depois quando não se consegue pagar niguém as vem proteger.
      V ha uns tempos um filme muito interessante sobre este assunto (ainda por cima com o Vincent Lindon): Toutes nos envies. Fala de advogados que lutam contra o sistema, que defende essencialmente as instituições bancarias e afins.

      http://www.allocine.fr/video/player_gen_cmedia=19237468&cfilm=173428.html

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    2. Sim, há uma grave falha na literacia financeira. Vi há anos uma Ted Talk portuguesa sobre esse assunto que referia que a maioria assina de cruz contratos que são para uma vida e que deveríamos exigir linguagem mais acessível. Depois de "sair" daqui esbarrei nisto http://aventar.eu/2014/01/17/a-banca-ganha-sempre/. Está na hora de sermos solidários também com o vizinho do lado e cada um ajudar com o que sabe e não só com o que tem.

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    3. "Caso encerrado. A banca voltou a ganhar". E é exactamente isto. Vou partilhar este link. Obrigada.

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  5. Eu vejo isto todos os dias. O antes e o depois. No meu caso as imagens muitas vezes têm rosto. Hoje mesmo vou a uma casa que foi deixada para trás. A tantas que já fui e a tantas que ainda irei. Assim mesmo, todos os dias. Até quando?

    Gostei muito do teu texto. Dá-lhes uma alma, tantas vezes perdida.

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  6. Vais às casas que vão ser penhoradas, ou deixadas para tras, como dizes, ainda com as pessoas ? Isso deve ser duro de viver, imagino o ambiente...
    Acho que estas situações não podem ser compreendidas nos telejornais, no meio de tanta informação, ou em quadros excel, se nos colocarmos nos sapatos de quem as vive, torna-se insuportavel. E é ai que nasce a vontade de fazer ou exigir uma mudança.

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  7. Sim. Parte do meu trabalho é calcular o valor da casa. Em euros. Não em sentimentos.
    Visito as casas umas vezes antes, quando ainda tentam a perder, ou depois quando já as perderam.
    É f****o.

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    1. Resta-me aconselhar-te a leitura de "O banqueiro Anarquista" de Fernando Pessoa.

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  8. O meu trabalho também inclui o antes, quando tudo ainda vai correr bem, quando há esperança, quando dão passos maiores que as pernas iludidos por facilidades... Eu não trabalho para o banco, eu apenas faço consultoria, avalio imóveis para crédito ou para "descrédito", as pessoas não são o meu departamento, mas eu sou indissociável das pessoas, por isso me custa.

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    1. Compreendo. E percebo que não consigas estabelecer os limites entre o que fazes e as pessoas que estão implicadas. São limites dificeis de se estabelecer quando estão vidas metidas...

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    2. PS : Seja como for o livro que recomendo, é um bom livro em absoluto. ;)

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    3. sim já comecei a tentar perceber o que é isso de ser anarquista, na teoria e na pratica. obrigada

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    4. Um cão de loiça anarquico... Fazes-me sonhar.

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  9. Oh, Carla fiquei tão triste por ti... Coragem!

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    1. Mas Alexandra, este post é sobre a empatia que sinto por quem perde as casas, não é sobre a minha vida.

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    2. Muitos nos vemos no mesmo barco... A possibilidade de isso poder vir a acontecer é tão assustadoramente presente que me tolda o raciocínio e a recuperação lenta de uma gripe, também! : )
      É um assunto difícil de engolir...

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    3. O texto presta-se à confusão, agora que o reli vejo isso. Mas pode ficar assim, ilustra o que sinto, que estamos todos no mesmo barco e um dia acontece aos outros. No outro dia pode acontecer a mim.

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  10. Carla, gostei tanto de ler este post. Há muitos anos atrás, a casa de uma professora minha ardeu. Quando ela voltou à escola, um dia desabafou e disse-nos que o mais lhe custava ter perdido era as fotos de familia, do casamento, os momentos da infancia dos filhos. Todo aquele papel, que materialmente vale perto de zero, era o que lhe doia mais na alma ter ficado em cinza. Quando ela nos disse isso, fiquei incrivelmente triste por aquela situação, ao ponto de nunca mais me esquecer do sentimento, que pode ser implicar perder o que de mais precioso que existe "numa casa". Não se trata do valor material, trata-se tal como tão bem disseste das memorias, das horas de trabalho, dos sacrificios...beijo!

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  11. Tão triste e que angústia tão grande!
    Os meus tios também tiveram que voltar de Moçambique. A imagem deles e as expressões das caras quando os fui buscar ao aeroporto há muitos anos atrás é algo que nunca esqueci e que me marcou.
    Que pena a vida ser assim.
    Por outro lado não nos pode derrotar e por isso só nos resta ficar mais fortes e lutar, não desistir.
    Concordo a perder algo seria a memória que as fotografias e os filmes dos meus me dão que mais me custaria perder. A imagem dos meus filhos é algo que não quero perder nunca.

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    1. Pode-se deixar-se derrotar um bocadinho, pode-se desistir durante um tempo, pode-se ficar mais fraco e não apetecer lutar. Mas depois, vai-se vivendo e o passado não pode tomar o lugar do presente. Tenho algum receio da nostalgia quando tomada sem moderação. Pelo menos nestes casos.

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  12. Este post tocou-me muito...salvaria precisamente o mesmo...as memórias...!!
    Passei por acaso mas gostei muito e já estou a seguir.
    Bjs
    Maria

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