29.5.14

Crónica de uma empatia crónica 3

Tive sorte por não ter sido violada. Sei-o hoje.

Nem sempre soube-me vestir de acordo com o que os outros esperavam. Nem reagir logo como devia. Nem sempre frequentei as melhores escolas. Nem estive no lugar certo. Nem sempre fui justamente julgada pelos meus pares. Nem encontrei justiça onde a procurei.
Li este artigo ontem e não me tem saído da cabeça que eu podia ser aquela rapariga. Andámos na mesma escola quando tínhamos catorze anos. Ambas somos do género feminino. Nenhuma das duas se conseguiria defender de quatro colegas sozinha.
O que nos separa é que eu tive a sorte de nunca ter sido violada.

(Sinto neste momento uma grande raiva e não sei o que fazer com ela).

Passei o dia de ontem a ler as noticias que encontrava. Com perguntas a crescerem-me na cabeça. E tenho passado a noite a rever todas as injustiças que tenho presenciado, todo o encolher de ombros por parte das vitimas, com problemas maiores que elas. Tenho passado as ultimas horas a dizer mal deste sistema em que tudo pode ruir, se não houver dinheiro para o impedir.
Não conheço a família, não conheço esta rapariga, não conheço detalhes desta historia. Não sei do que é que precisam que eu faça. Não faço ideia do que é que se passou para se chegar a este ponto.
Não sei.
Não percebo.

O que se passa numa escola em que se deixa os rapazes apalparem as raparigas no recreio ?
O que é que se passa numa escola em que acontece algo tão grave e não se muda nada ?
Quem é que decidiu que não era necessário proteger-se esta rapariga ?
Quem é que achou que era normal que ela se cruzasse todos os dias com os seus agressores ?
Quem é que julgou que tudo poderia continuar como dantes e que nenhuma consequência seria imposta aos agressores ?
Não existe justiça de menores em Portugal ?
Quem é que não organizou uma acção de sensibilização nesta escola, onde todos os valores parecem trocados ?

Estamos entregues aos bichos, mas não somos bichos.
Não podemos viver numa sociedade em que este tipo de situação acontece, sem esperarmos uma solução institucional. Já não esperamos mesmo nada do Estado ?

Aponto o dedo à direcção desta escola e espero que caia se realmente tiverem culpas no cartório.
Aponto o dedo ao tribunal que julgou este caso e não tomou as decisões certas para que se fizesse justiça. Se houve negligência, peço que se demitam.
Aponto o dedo aos juristas que não mudaram as leis e as adaptaram à sociedade que deviam servir. Se não existem leis que protejam as vitimas neste tipo de crime, exijo que sejam castigados.
Aponto o dedo à PSP, que não passou um crime deste tipo à PJ. Se houve incompetência, quero que sejam punidos.
Aponto o dedo ao governo. Se não dá meios para que as assistentes sociais trabalharem e façam o seu trabalho, quero que caia.

Hoje parece-me um bom dia para exigirmos que a justiça funcione. Façamos juntos pressão nesse sentido.
"Não sermos violadas" não pode ser apenas uma questão de sorte.

11 comentários:

  1. Relativamente a este assunto, poderá ajudar juntando-se a http://quadripolaridades2.blogspot.pt/.

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  2. Ouvi dizer que parte do problema se deve ao facto de os tais rapazes serem de um grupo de pessoas que costuma estar associada à violência impune (estereótipo? estereótipo que alimenta o medo das próprias autoridades - escola, assistentes sociais, polícia?). Não sei se é verdade mas é realmente estranhíssimo que ninguém se tenha mobilizado.
    O artigo da Leididi de hoje põe o dedo na ferida maior que é o deixar passar de vários tipos de violência sobre as mulheres. Como se fosse normal uma menina estar sujeita à pressão, ao medo, à ameaça e ninguém fizesse nada antes que a coisa seja "séria".

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    1. Estou totalmente de acordo com esse post, este assunto é de todas as mulheres. E começa muito antes de se chegar a este extremo. Não se nasce psicopata, este miudos foram testando até onde podiam ir. E o pior é que os deixaram ir longe demais.
      Neste caso houve muitos tipos de instituição que fallharam, uma coisa é uma mentalidade sexista, outra é o que aconteceu : Não nos podemos parar numa analise simples, existem leis, existem métodos, existem profissões que estão previstas e não foram utilizadas. E tal, não pode ficar pela simples (apesar de necessaria) denuncia de uma sociedade recriminatoria.
      Não quero entrar em conversas de grupos/etnias que são impunes. Estamos a falar de seres humanos, de vitimas e agressores e não cumpridores.

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  3. Eu culpo os violadores e os seus pais , que não lhes deram educação rigorosamente nenhuma ! E não digo mais nada para não parecer radicalista (que nestas alturas o sou !)

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    1. Culpo toda a gente que podia impedir esta situação e não o fez. Se os pais não souberam fazer o seu trabalho, a sociedade tem que saber prevenir e defender-se.

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  4. desde que li nunca mais me saiu da cabeça. Tenho uma filha com 14 anos. Parece que foi ontem que eu mesma os tive. Não me aconteceu a mim porque não calhou, tantas vezes estive no sitio errado mas, felizmente, sem ser há hora errada. Sou licenciada em serviço social, trabalhei 10 anos ao lado de comunidades desfavorecidas, ao lado de grupos e de pessoas a precisar de apoio, perto dos que estão lá. Sinto na pela a injustiça de um sistema minado, injusto, insensível e cego. Fugi. Não consigo viver perto de tanta dor, de tanto sofrimento, de tanta injustiça. Esta notícia abalou-me imenso. é terrível perceber que este é o nosso mundo. É assustador pensar com tempo e com sentimento no que estas pessoas estão a passar. Nestas vidas, nesta menina. A mim só me dá vontade de lhes dar a minha casa, de a trazer para aqui onde pode estar em paz, onde pode abrir os olhos e ver que há mais no mundo que maldade, dor e injustiça. Dói-me tudo, nem imagino o que será estar mais perto disto.

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    1. Este sistema tem que mudar. Não podemos continuar a falar de civilização enquanto este tipo de situações é possivel. Esta chapada de realidade tem que servir para abrir-nos os olhos e exigirmos uma mudança.

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  5. Eu posso ajudar, pode ser temporário mas posso ajudar, mandei mail para quadripolaridades@hotmail.com liguem-me.

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  6. Eu também não conheço todos os contornos da história mas é absolutamente surreal que ninguém tenha feito alguma coisa. Como é possível? Quantas Carolinas existirão por essas escolas fora?

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    1. Existem muitas mais infelizmente.
      Alias, esta historia também é fora do comum, exactamente porque desta vez chegou à comunicação social.
      O sistema falha muitas vezes...

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