10.2.14

Crónica de uma empatia crónica II

Na fila do super mercado, sempre infindável à sexta feira, fala-se da minha vida. Não tenho direito de adoptar os meus filhos, não tenho direito de fazer inseminação artificial e é uma vergonha que me possa casar com a pessoa que escolhi. A não ser que seja de outro sexo.
As senhoras da fila do super mercado, são pessoas apresentáveis, bem compostas, fato engomado, cabelo penteado e até me pediram perdão quando o seu carrinho chocou acidentalmente com o meu. Vê-se que segundo muitas regras da sociedade, são pessoas que sabem estar. Devia ouvi-las, muito provavelmente.
Não tenho o direito de ter filhos, nem família, mas é apenas isso, de resto não têm nada contra mim, tenho que aceitar as coisas como elas são. Como sempre foram. Porque é assim que as coisas são.
Paguei as minhas compras e fui-me embora, mas as senhoras da fila do super mercado estão em todo o lado. Acendo a televisão e estão ali a dizer que os meus filhos vão sofrer muito se os adoptar. Ouço o debate no parlamento e estão todos preocupados com o que vai ser o futuro deles. Deles dos meus filhos. Deles dos partidos. Percorro o facebook e vejo que exista quem defenda que eu possa casar, contra os que me dizem que a minha vida, o meu amor, a minha família não pode ser. Não pode ser. Não posso dar o pequeno almoço aos meus filhos, se o meu namorado for uma namorada. Não lhes posso ler historias no final do dia, nem busca-los à escola. Se for ao parque infantil com eles e mão dada no meu namorado, pode ser. Mas se o meu namorado, for uma namorada, não. Tenho que compreender estas coisas. Está-me a ser difícil compreender que posso ser anti-natura, mas essa é a realidade que tenho que assumir.
Não posso ficar muito tempo ali à frente das senhoras do super mercado, que às vezes são rapazes adolescentes, ou famílias inteiras, senão vão começar-me a dizer que não posso fazer o que faço na minha vida. O que basicamente é dizer-me que não posso viver. Não é por mal, tenho que compreender, eles fazem isso pelo bem dos meus filhos.

Não tive uma educação particularmente homofóbica e quando me apaixonei - perdidamente e apenas duas vezes - não fiz cálculos, não escolhi, fiz como nos filmes. Como nos filmes, como se a vida fosse um filme. Não sei nada da vida. Não percebi que essa coisa de se apaixonar não pode ser assim. Não se pode seguir o que se sente, isso é que era bom. Tem que se ter muito cuidado e escolher a pessoa certa. Afinal, é simples, se houver boa vontade, se eu sou mulher, tem que ser um homem, se eu for um homem, tem que ser uma mulher.
Quais belezas interiores, instintos e sentimentos ? A vida não é um filme. Na vida existem regras.
O meu namorado é um homem, eu sou uma mulher. Mas ninguém sabe, nem faz ideia, que isso foi um mero acaso, que quando me apaixonei por ele, não o escolhi. Uma coincidência que a ninguém diz respeito. Caras senhoras, podem sair da minha cama, por favor ?
Quando se fala do direito dos homossexuais, estão a falar também dos meus direitos. Porque sou um ser humano, antes de ser um ser heterosexual, ou outro tipo de sexual que possa caber numa gaveta. E porque sou dada a paixões e amores irracionais. Como pensava que todos éramos.
Vivendo num mundo livre. E real.

14 comentários:

  1. Texto maravilhoso! Se caminharmos um pouco nos sapatos dos outros, se desafiarmos a perspectiva que temos da nossa vida, perceberíamos que afinal percorremos todos os mesmos caminhos.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Basicamente é esse o resumo desta ideia : ver o mundo noutra prespectiva, na dos vizinhos do lado. Não é preciso grande esforço para perceber o absurdo da incompreensão.

      Eliminar
  2. Fico mesmo triste que esse tipo de confronto ainda aconteça hoje em dia, num país como França. Bom, mas descobri ontem que os ingleses também fazem "turismo de borrasca" e nem vamos começar os portugueses. Mentalidades tão pequeninas, tão petrificadas...
    (já viste o her? Entre outras coisas boas, adorei a abordagem de uma sociedade em que já não existe mesmo homofobia)

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Fico triste e revoltada e, apesar de tudo, surpresa por ainda estarmos neste nivel de raciocinio depois de passados tantos anos longe da idade medieval.
      (Não, ainda não vi mas quero muito ver).

      Eliminar
  3. Às vezes tenho muita pena de não te ler mais vezes!
    Obrigada!
    És uma pessoa à maneira. E sim estão a falar da nossa vida!

    ResponderEliminar
  4. Há coisas subtis que nos fazem ver que o caminho é longo, Carla! Muito longo! Uma vez ao falar com a Gralha que entre nós há 5 rapazes ela disse que, eventualmente, mesmo assim, ainda podemos vir a ser comadres. Uma vez mais tarde, num grupo de colegas, repeti a piada e os sorrisos desvaneceram-se todos, mas todos, pá. Foi assim, um "ai, não digas isso que dá azar, ainda acontece...". Gajas modernas, mães, formadas, lêem blogues e têm FB, nada, não dá, olha que dá azar...

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Nem sei se o caminho é longo, antes desta polémica eu achava que estavamos mais adiantados, depois é que me deparei com a dura realidade e fiquei com a sensação que se andou para tras. Por vezes, acho que foi tudo manipulação e com outro tipo de lideres poder-se-ia ter evitado para confusão e desinformação.

      Eliminar
  5. Obrigada pela compreensão. Um dia destes eu vou casar-me com ela, vou. "o importante é sermos felizes", diz a minha filha mais velha.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. E diz muito bem. Parece tudo tão simples. Talvez porque na realidade seja mesmo, não fosse muita gente andar a complicar.

      Eliminar
  6. Tomei a liberdade de te citar num post do meu blogue :)
    http://cha-de-verao.blogspot.pt/2014/03/chumbo-da-coadocao_20.html

    ResponderEliminar

Pessoas

Nomadas e sedentarios