5.2.15

(Resmungar) discretamente no Sul de Goa


Gostava de escrever como gostei de Tamil Nadu. Do caos absoluto e semi organizado da rua. Da calma de quase todos os templos. Da intensidade. Dos rituais e do folclore. Daqueles deuses todos, com todos aqueles braços e de todas aquelas formas de os venerar. De comer com a mão direita em folhas de bananeira. Da comida vegetariana. Dos meus filhos a não quererem comer carne e de como tento ganhar tempo até que isso aconteça de uma forma total e definitiva. De como o saco da Calita apareceu roído e as bolachas comidas. De como esperamos que tenha sido um esquilo e não um rato. Mas quando estava a viver, não parei para escrever.
Também gostava de escrever sobre o Kerala. A calma de Cochim. O teatro intimista de Katakali. Da minha filha a querer voltar todas as noites e meu filho a ameaçar matar-se se o fizermos. Do facto de ser uma sociedade matriarcal. As mulheres ! Da historia sobre a chegada de Vasco da Gama, tão diferente da que me contaram na escola. Da altíssima taxa de alfabetização. Da mistura aparentemente pacifica entre varias religiões. Do comunismo. Das bandeiras vermelhas. Dos retratos e t-shirts do Che Guevara. Do não assédio sexual (chamem-lhe piropos) nas ruas. Da nossa experiência alternativa nos backwaters. Ai. Dos turistas franceses que quase me convencem a ir para uma semana num Ashram. Do medo que o Francês sentiu nesse momento. Das plantações de chá nas montanhas de Munnar. Dos macacos. Da tristeza que vimos nos olhares dos elefantes que servem de carrossel para os turistas. Dos templos com elefantes acorrentados. Do meu filho a sair arrastado desses templos, a chorar. Dos muitos eucaliptos, que aprendi a detestar. Da visita guiada pelo mundo das especiarias, onde mastigamos folhas e árvores. E do nosso safari nocturno frustrado. Espero aqui voltar para isso.

Entretanto, fizemos uma viagem de comboio, que começou com as habituais sessões fotográficas. Digam queijo, pedem-nos.
Quando começamos a andar, as camas sobrepostas são transformadas em casa na árvore. O comboio não vai cheio e temos os seis lugares para nos. Vejo as minhas crianças a trepar e a saltar. Uma senhora aproveita a ocasião para mostrar que é muito sensata e preocupada ai que vão cair, ai que é perigoso. Uma constante na India, uma moto pode passear-se com três crianças sem capacete a alta velocidade, mas se vêem os meus filhos a trepar uma arvore parece que ha risco de morte. 
Não traduzir e confesso divertir-me com esta intromissão, passo por uma mãe francesa desleixada e fica a salvo a reputação das mães portuguesas extremosas.
A viagem durou toda a noite e uma boa parte da manhã, durante quase todo o trajecto passaram vendedores de chai, coffee, eventualmente milk, se pedíssemos com jeitinho, mas também refeições completas que ia sendo anunciadas em voz alta. O que é util se tivermos fome, quase indiferente se estivermos a ler e um palavrão, se tentarmos dormir. Sonhei que tinha caido numa piscina de caril de vegetais e fui salva por um butter naan gigante.

Mas agora entramos no estado de Goa e estamos num impasse. Ninguém quer sair daqui.
Aconselharam-nos que evitássemos certas praias. A maioria. Falaram-nos muito mal dos coitados dos russos, que só se querem divertir. The russian style, ao que parece é musica alta, álcool e drogas. E enviaram-nos para uma praia familiar, a Palomen beach. Mas quando la chegamos, aconselharam-nos outra, ainda mais calma. A Agonda beach. Estávamos felizes. Até que nos aconselharam outras praias mais a sul. Ou apanhar o barco e ir para a praia das borboletas. E com certeza, na praia das borboletas, haverá mais a oeste outra ainda melhor. Mas nos ficamos por aqui. Decidimos que o paraíso é onde estivermos.
O que, convenhamos, não é muito difícil quando estamos na Agonda beach.

A vida em Agonda beach não é o que eu esperava da minha vida na Índia. Para dizer a verdade, é a vida mais fácil que alguma vez tive. E eu tive a minha quota de vida fácil.
O ar é morno. A comida é morna. A agua é morna. Cruzo-me com uma russa numa onda, que me mostra um peixe de plástico com um termómetro, como o que usava para os banhos da minha primeira recém nascida. Marca 29°. Diz-me que ontem ao final do dia marcava 34°. Mais quente que a agua da sua banheira em Moscovo, diz-me. Há muitos russos em Agonda beach, mas não parecem estar informados sobre o seu proprio style. São essencialmente casais novos com filhos, ou reformados, mais calmos que nos.

Rotinas. De manhã, o nosso filho acorda-nos geralmente com fome e eu visto-me com ele, contornamos uma senhora que faz a esparregada, e outro grupo que esta a meditar ao pé dos coqueiros e entramos no restaurante ao lado para pedirmos o que queremos para o pequeno almoço. Há de tudo, mesmo torradas. Nada de Idlys, Vadai ou comidas quentes obrigatórias, como em Tamil Nadu. Verificamos, com alguma surpresa, que o nosso estômago é muito menos aberto a novas experiências quando acaba de acordar.
A frente da nossa cabana com vista para o Oceano Indiano, os miúdos aceitam fazer uma ficha inteira de gramática francesa antes de mergulharem no mar morno. O mar é quase só para nos. A sombra temos que partilhar com as vacas. A maior parte dos turistas são quase locais. São antigos hippies norte americanos, que se conhecem todos uns aos outros e que agora vêm para ter mais umas aulas de yoga, beber cerveja e ouvir blues ao vivo nos bares à noite. Em média passam três meses por ano, sem sair daqui para cortar o Inverno. Na praia enorme, devemos ser uns vinte na agua. Quatro teimam em não sair. Somos nos.
Apesar de parecer ser o lugar ideal para ter aulas de yoga, não me apetece entrar numa sala, nem mesmo juntar-me às aulas de madrugada frente ao mar. Todos parecem iluminados, à noite chamam a lua cheia de my friend. Riem muito alto. e maquilham-se da mesma maneira. O que eu gostava mesmo era de estar na classe de yoga da Casa do Povo de Corroios, onde fui tão feliz, humilde e séria há duas décadas atrás. Outra vida.

Quando o sol fica forte, os meus filhos calculistas pedem para fazer mais uma ficha, para acalmarem as minhas ganas de sair daqui, almoçamos e atacam cálculos matemáticos durante a digestão. Continuo com um mau humor fininho, como forma de manipulação pedagógica. Resulta. No final do dia, passamos por uma senhora que contorna a proibição de topless com duas conchas nos mamilos e mergulhamos até depois do pôr do sol. O pôr do sol em Agonda beach é um flop, desaparece sempre antes de tocar no mar. Mas é tudo tão morno e sem dor, que ninguém se lembra de reclamar. A cada dia que passa alguém arranja uma desculpa para prolongarmos de mais uma noite a nossa estadia aqui. O Francês argumenta que é o único lugar na Índia em que consegue ter sossego mental para estudar tudo o que quer, e ao pequeno almoço, para além de mel e frutos, junta ao meu muesli, o que Mouzinho de Alburquerque andou aqui a fazer, detalhes do trabalho de São Francisco de Xavier e como os hippies começaram a dançar goan trance music. No processo, tentamos explicar à nossa progenitura anti-clerical que a historia da igreja cristã pode ser tão interessante como o hinduísmo e o budismo. Os miúdos-lambe-botas explicam-me que aqui estudam mais do que noutros lugares, no intervalo dos mergulhos. Que estamos aqui tão bem e eu começo a sentir uma empatia muito forte por Ulisses na ilha de Calipso. E vou passando os meus dias, suspirando com o Rajasthan e resmungando que isto quase que nem sequer é a Índia.
Mas baixinho.

PS visual :

3 comentários:

  1. * um suspiro profundo *
    que vontade de viver esse lugar!

    ResponderEliminar
  2. Ah, mas a piada de viajar é mesmo essa, deixem-se ficar aí três meses, o mundo continuará no mesmo lugar.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Três meses "fechada" numa praia ? Pensava que gostavas de mim.

      Eliminar

Pessoas

Nomadas e sedentarios