26.1.15

Falsos alarmes


Acordou às 3h da manhã com calor e não conseguiu adormecer mais. Na Índia, ter um filho pequeno com febre pode fazer medo. Aquelas doenças esquecidas e longínquas aparecem, imediatamente, no pequeno horizonte de um quarto de hotel.
Tuberculose. Tifóide. Malária. 12 horas para agir.
Descemos às 5h à recepção. Três homens preocuparam-se e dois desceram à rua para nos chamarem um rickshaw, deram instruções em Tamil, negociaram o preço. Alguém ia tomar conta de nos. E seguimos. E vi a Índia com outros olhos. O lixo acumulado na esquina. Homens magros a empurrar um carro de madeira numa estrada que sobe, cansados, transpirados. A buzina enervante  de um jipe de cidade branco. O vitelo a ser enxotado para que se tire o leite da mãe na rua. A mulher a pedir dinheiro e a fazer gestos com a mão. Quer comer. O patrão a discutir alto com o empregado. Cabisbaixo. Chamarem-nos de master, como se isso não fosse um insulto. O fumo do tubo de escape da mota da frente. Os prédios antigos esquecidos, a arruinar-se, ao lado de prédios novos disformes, cheios de publicidade. Jóias, comprem jóias. A quantidade de lojas de jóias. As pessoas a dormirem na rua.
O meu filho doente.

Na primeira clínica discutem em tamil e fazem sinal que temos que ir a outro lado. Seguimos até ao proximo posto. Na sala de espera, esperamos, o médico tarda a acordar. Não penso. Não sinto. Chega a bocejar, com um inglês incompreensivel e alguns diagnósticos à escolha. Não é malária, alivia-nos meia hora depois. Podia ser tuberculose, se não tive tomado a vacina antes de viajar. Pode ser febre tifóide, porque a vacina que existe cobre apenas um dos tipos de tifóide. Temos que fazer investigations. E continua a falar de tratamentos choque, injecções, hospital.
Entretanto, o meu filho brinca no parque à frente, já sem febre. Se a sua situação estabilizar, tudo não passou de um susto.
No caminho de volta, já há mais gente na rua. Hello ! saudam-nos nos sinais vermelhos ou quando uma vaca abranda o trânsito. Vejo três vacas a avançar lentamente, alheias ao caos à volta. Talvez sejam elas o equilíbrio da cidade. Vejo as lojas de especiarias a abrir. Os cheiros. Os pequenos almoços indianos a serem servidos nas bancas da rua. Idly, Vadai. Sweet Pongal. Na rua todos aconselham Idly ao pequeno doente. Vai ficar bom. Os rapazes a caminharem de mãos dadas, ou com o braço sobre o ombro. As senhoras a desenhares kolams à frente das portas de casa. Geométricos, às flores, a branco ou coloridos. Frágeis. Todos os dias a recomeçar. As bancas das flores para os templos ou para enfeitarem os cabelos, flores brancas e laranjas enfiadas num fio, em forma de colar. O cheiro do incenso que se mistura com o ar fresco da manhã. Os mercados de fruta cheios de romãs e gengibre. O carrinho do senhor que passa a ferro na rua, calças e camisas. A frase Please Horn na parte de trás dos carros, a buzina como forma de comunicação. um toque rapido estou aqui, um toque prolongado não passamos os dois, sai da frente. O toque de buzina com som a pato esganado no meio do caos. Os homens a usarem um pano branco da cintura até aos pés. As cores dos saris. Os cabelos longos e brilhantes. As perguntas sobre a febre do baby das pessoas do hotel e de quem passa na rua. He's all rigt now. As beliscadelas nas bochechas, as festas na cabeça, os sorrisos.
Foi um vírus passageiro apenas, que podia ter sido muita coisa durante algumas horas, e que me lembrou que a Índia é outro mundo.
Um mundo que, visivelmente, ainda estou a descobrir.

...

Em Trichy, no magnifico templo de Srirangam aborreço-me. Todas as portas, torres e templos estão tapados para renovação. Para a semana, vai haver um grande desfile e devem querer destapar tudo ao mesmo tempo, em grande aparato. Entretanto, temos a ver escadas de madeira e grandes painéis de plástico azul.
E Bano. 8 anos de idade e duas tranças negras, veio ter connosco ainda não tínhamos descalçado os chinelos. Hello ! How are you ? What's your name ? Enquanto percebíamos onde é que era a entrada, as crianças organizaram uma visita guiada com o seu inglês rudimentar. Bano, a filha de um dos trabalhadores da renovação do templo, que por uma razão que não percebemos não tinha ido à escola, mostrou aos meus filhos onde deviam ir e como deviam fazer. God. God. Golden God. Came. Came.
Íamos atrás dos dois visitantes com a sua guia, a sentir-nos invisiveis. Nos pequenos templos, ela pintava-lhe as marcas nas testas, mostrava-lhes o que fazer, falava com os trabalhadores usuais dos templos para serem benzidos, rodavam no sentido dos ponteiros do relógio à volta dos deuses. King Monkey. God. Came. Imitaram a postura de Vishnu a tocar flauta, God, God, Came. Espero que não tenham bebido a agua que lhes deram num dos templos. Entraram os três em templos apenas para hindus. Nos ficávamos atrás, de fora à espera, para evitar heresias e dar independência a quem tem experiências a fazer e religiões a descobrir. Saíam satisfeitos com mais uma marca na testa. Fizeram desenhos uns dos outros e falaram não consigo imaginar de quê.
Photo. Photo. Vinham complicar e intervir adultos. Queriam ver o que se passava. Ver os desenhos. Dizer muito bem. Aprovar. Como se houvesse necessidade de aprovações. Avaliações.
No final, tive receio da despedida. Confesso agora com vergonha, que tive medo que nos pedisse dinheiro. Mas quando fizemos sinal que nos íamos embora, as crianças despediram-se com sorrisos. Bye ! Bye ! Tinha tudo sido apenas porque sim. Como às vezes ainda pode ser.

A foto também é porque sim.

2 comentários:

  1. Não sei se tens noção mas nós, à mesa, discutimos o vosso devir como se tratasse da telenovela. Bom, não há necessidade desses episódios que envolvam febre e diagnósticos obscuros. O resto da história já tem emoção que chegue.

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    1. Não tinha noção, não. assim sendo, tenho mesmo que vos falar da peninsula Valdès com urgência. Esperem um bocadinho e vão comendo chamusas.

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