31.12.14

O conforto da estrada batida


Começamos a subir pelo outro lado da cordilheira dos Andes, na terra a que chamam Chile. Atravessamos um imenso lago turquesa a que deram um nome com o qual não posso concordar, assim como não concordo com fronteiras ou com limites humanos impostos a uma natureza tão enorme. Tão maior que nós. Sejamos humildes, isto não é nosso.
A carretera austral transforma-se em estrada de terra batida, em pista de obstáculos, de vez em quando uma pedra enorme cai, o autocarro deve contornar. Assin es. 
Árvores por todo o lado e à frente montanhas, que se erguem com neve em cima. Não cruzamos ninguém na estrada e largamos uma nuvem de poeira atrás que teima em não cair. Deixo o meu lugar e venho sentar-me à frente, ao lado do condutor, venho com a maquina na mão, para tentar guardar o que puder : e quero que seja tudo. Mesmo esta excitação súbita que tenho em mim. Lembro-me das historias de África que me contava o meu avô, das longas viagens de terra batida, da natureza à volta, da solidão. Quero conduzir um carro e atravessar uma estrada pouco usada, uma estrada por fazer. Ver o que nunca vi.
Penso na expressão zona de conforto que até aqui nunca tinha percebido. Não tinha compreendido este conceito associado aos trabalhos de longa duração, às casas, aos chazinhos, à lareira e aos sofás, porque aqui sempre me senti inquieta. Desconfortável. A minha zona de conforto, se calhar, é em lugares assim, como nas historias de família. Em lugares vividos, outros contados, da minha infância, com leopardos de saltam para cima do capôt do jipe, com estradas longas de vários dias, com dormidas no carro, com algum medo.
Tiro fotos. Tento não pensar em todo o esforço feito para viver como os outros. No desperdício que foram todos aqueles anos. Tiro fotos. Não posso deixar de fotografar isto tudo. Não me posso esquecer.

Vamos a caminho de Puyuhuapi. Fazemos escalas, enquanto a paisagem vai mudando. No caminho, dormimos em pensões de madeira com chaminés dentro. O mundo que vimos. O rio a correr em baixo. O manto de flores silvestres azuis. Parecem nuvens no chão a descansar, pensa alto a minha filha. As montanhas. As nuvens. O céu.
No caminho passamos pelo Ventisqueiro Colgante - um glaciar em cima de uma montanha. Penso em filmes épicos, nunca tinha visto nada assim. O autocarro continua até onde vai acabar o mar em forma de rio. Voltaremos aqui.
Puyuhuapi foi terra de vulcões virgem, até aos anos 30, altura em que chegaram os primeiros colonos alemães, incentivados pelo governo chileno que dava terra a quem a trabalhasse.
Dormimos na casa de madeira da família Ludwig, uma casa alemã construída pelo pai de Luísa, cheia de fotos dos primeiros anos em que aqui chegaram. As cheias. O elefante marinho que deu à costa. As crianças num piquenique. A pose oficial da família. A serralharia.
O livro sobre a família Ludwig em cima da mesa da sala de estar. Um em alemão e outro em castelhano. Luísa fechou o ciclo, olho para ela como quem quer olhar para o futuro. Nasceu na Alemanha de leste e emigrou com a família, é a criança loura nas fotos. Estudou psicologia em Berlim e trabalhou na biblioteca Nacional de Santiago. Voltou à Patagónia, transformou a casa dos pais em hostel, conseguiu que fosse reconhecido como monumento histórico chileno e escreveu o livro que conta a historia de família.
Hoje, serviu-nos o pequeno almoço, sintonizou a radio numa estação de musica clássica e emprestou o jogo de xadrez esculpido em madeira aos meus filhos : mapuches contra conquistadores espanhóis. Diz não estar habituada a crianças assim, que os jogos electrónicos já chegaram a Puyuhuapi. O exótico encontra-se onde menos se espera.

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