29.11.13

Graças


Graças aos planos da Gralha, comemos ontem à noite um belo de um peru recheado congelado, que encontrei no Picard. Já não fui a tempo para a sobremesa de abóbora, pelo que foi mesmo a fromage blanc com crème de marrons, que assim em francês soa muito bem, mas é quase a mesma coisa que dizer iogurte natural com mel, ou coisa que o valha.
Esta tradição nem é minha, pelo que para quem era, bacalhau bastava.

Comecei por agradecer a família que tenho, muito senhora de mim, com uma voz aveludada, quase que posso jurar que até endireitei as costas e tudo. Estive quase, quase, vai não vai, para passar uma escova pelo cabelo, tal como tinha feito em 2009.
E a seguir, eles.
Ela agradeceu a melhor amiga e uma gata de peluche. Ele o melhor amigo e queijo. O pai tentou voltar ao sentimentalismo familiar e apelou para as viagens em família, para a partilha. O filho lembrou-se de agradecer a viagem a Inglaterra e as chips inglesas. Ela agradeceu as chips em geral e o chocolate de leite, em particular. O branco também podia ser. Eu, insisti, no sorriso dos meus amores, estava para meter musica ambiente e tudo. E a partir dai eles lançaram-se em agradecimentos à industria lacticinia, à exploração mecânica do cacau, do milho, das gomas e dos smarties. Aos animais mortos que comemos, todos os brinquedos e mais um que têm, perderam ou que já não usam, mas mesmo assim, contaram no seu tempo. E a piscina no Algarve.
Tentei novamente, que não sou de desistir facilmente, agradecer a minha mãe,o meu pai, a minha irmã, fiz-lhes ali um diagrama pormenorizado da nossa árvore geneologica. Vivos, mortos e animais de estimação. Agradecidissima. Estavam de dedo no ar, como na escola, à espera de vez, estavam a faltar as bicicletas, e havia urgência em falar do circuito de comboios em madeira, das trotinettes. E passo.
A acção de graças não mais acabava, faltou a lista de compras do super-mercado, mas eles haveriam de la chegar.

Esta noite, em que comemos batata doce e romã a acompanhar o pobre do bicho, deitou-se por baixo a imagem inocente, anti materialista, que tinha da minha rica prole. O Natal tinha-me convencido, ano após ano, que os meus filhos eram muito espirituais, gente mesmo às direitas. Não fazem birras nas lojas para terem doces ou brinquedos, a minha filha pede pelo terceiro ano consecutivo uma surpresa ao pai natal, que acha que não precisa de nada, quando os amigos lhes falam de tal ou tal brinquedo, não se lembram de o vir pedinchar. Nada, cinco estrelas. Não fosse a gracinha de ontem e ficaria com uma ideia completamente falsa, mas muito mais confortável, dos meus filhos.
Devemos sempre restringir, severamente, as tradições a que nos propomos abraçar. Tínhamos comido peru, porque não, e tínhamos falado de quem ganhou a corrida no recreio, a que jogo do elástico se dedicaram, ou coisa que o valha.

Mas é assim tão difícil agradecer a minha presença espontâneamente ?


Fotos daqui
E um pequeno extra. Não têm nada que agradecer.

8 comentários:

  1. Os meus estavam com tanta fome a olhar para o peru e acompanhamentos, que transformaram o exercício das graças num sprint para ver quem chegava primeiro aos arandos. Salvou-se o "quero dizer obrigado pela minha mamã princesa, linda e bailarina" e o "não faz mal a tarte estar mal cozida, comemos à volta", mas não é aquele coisa com que sonhamos a partir da cartilha de Hollywood.
    Queres apostar que o Black Friday vai colar mais depressa deste lado do Atlântico do que o Thanksgiving?

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    1. Pois, eu saltei a tradição (que bem vi nos filmes) de se agradecer antes de começar a comer - fizemos um mix, para irmos com calma e não nos esquecermos de nada. Suspiro.
      Não sabia que eras bailarina. ;)
      A cartilha de Hollywood e também a tradição pura e dura, creio bem, também agradece a comida e a casa e outras coisas que tal - preferia que se agradecesse o trabalho, a intenção, a união, a alegria, o samba. Eu sei la.
      Quanto ao Black Friday, ja colou, a ter em conta as promoções que estou a ver em todo o lado ali para os lados do facebook.

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  2. hahaha
    (mas olha que também se esqueceram de agradecer o ar que respiram, e assim)

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    1. Tudo o que era importante nem sequer lhes passou pela cabeça.

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    2. Se calhar não estavam preparados para pensar a sério no assunto. Se lhes perguntasses "se alguém te viesse buscar aqui para ires morar noutro sítio, o quê/quem querias levar contigo?"
      De certeza que não se lembravam dos pudins de chocolate.

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    3. Não calhou.
      E és muito querida por te preocupares com o meu pobre coração de mãe.
      Mas, mesmo assim a pulga não me sai da orelha : o meu namorado é a pessoa mais despegada materialmente que conheço, ao pé dele pareço a pipoca não sei quê (mantenho a referência bloguistica, para não nos perdermos no raciocinio), e diz que a cada Natal sofria um tsunami de playmobil e de legos. Alias, tenho provas em varias caixas, que entretanto, os meus filhos herdaram. Eu tive alguns brinquedos, mais ou menos como os meus filhos, mas nada de exageros e durante alguns anos achei que precisava mesmo disto ou daquilo. Estarei eu, com tantos "ai não me toques" no caminho certo ?

      PS : Nunca menosprezes a importância de um bom e caseiro pudim de chocolate.

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  3. Ui, nem me atrevo a fazer tal exercício. Os meus provavelmente nem agradeciam o que têm, aproveitavam para pedir o que lhes "falta", ou seja, o que lhes anda a ser impingido nos anúncios desde o início de novembro.

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    1. O que seria a vida se não fosse o risco ? Vai na volta e surpreendem-te.
      Quanto aos anuncios, isso é masoquismo teu. Corta na publicidade e vais ver que os miudos serão muito mais razoaveis na hora de pedir (e inteligentes e criticos e ...).

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