Consideremos uma escadaria. Não é confortável subi-la voltado de costas e quase ninguém o faz. Mas descê-la voltado de costas não só é desconfortável como é perigoso. Bastante perigoso.
O nosso modelo civilizacional coloca-nos numa escadaria, ou melhor, convence-nos de que a principal motivação das nossas vidas é subir essa escadaria. Somos ensinados a focar-nos nos degraus que se seguem e a mantermo-nos concentrados no esforço de subi-los. São raros os que se distraem desta tarefa e ainda mais raros os que não a aceitam.
O que a crise, ou a falência do modelo da civilização ocidental, tem vindo a fazer é confrontar-nos com a
possibilidade de sermos obrigados a descer a escadaria. Com os olhos treinados para a tal subida luminosa,descobrimo-nos de repente às cegas perante o abismo sombrio dos degraus que se colam, muito a
pique ou nem tanto a pique, aos nossos calcanhares. Rodamos sobre nós próprios e olhamos para baixo,
para de onde viemos, ou para lugares onde nunca estivemos, lugares para onde talvez nunca sequer tenhamos olhado.
Conseguiremos ver? Conseguiremos compreender o que nos é estranho?
Repudiando o entusiasmo dos fazedores de opinião que, no conforto de se acreditarem imunes aos efeitos
nefastos da crise, inventam e propagandeiam um El Dorado de oportunidades criadas pela crise, acredito
que esta crise (qualquer crise) poderá ser o pretexto, haja vontade e sabedoria suficientes, para se mudar, para se pensar um modelo melhor.
...
Há frequentemente uma relação perversa entre a satisfação dos interesses de uns, ou entre a rapidez e completude com que os interesses são satisfeitos, e o sofrimento que esse processo de satisfação implica em outros. Mesmo quando os interesses de uns e outros não são conflituantes, a escassez de recursos quase sempre determina que a satisfação de uns corresponda à privação de outros.
Considero que um modelo de civilização melhor terá de ser um modelo que tenda a minimizar os processos
que infligem sofrimento e a maximizar aqueles outros que proporcionam bem-estar, ou com toda a ambiguidade que a palavra suporta, felicidade.
Mas ainda que concordássemos em relação a isto, haveria certamente opiniões diversas em relação aos
elementos que deveriam ser incluídos no universo a considerar para efeitos de contabilização do sofrimento e da felicidade, ou dito de outra forma, haveria sempre opiniões diversas acerca dos elementos que
deveriam ser incluídos no universo a proteger. Parece-me em todo o caso inquestionável que os critérios a
utilizar para a delimitação desse universo devem ser critérios de natureza ética.
Regressemos à escadaria. Se respondessemos apenas aos interesses individuais, tendo em conta a escassez
de recursos e o conflito potencial entre muitos dos interesses individuais, cada um de nós escolheria incluir no universo a proteger apenas os elementos do degrau em que está, e os elementos daqueles outros
degraus em que considera poder vir a estar num futuro próximo. Considerando a tal vontade de ascensão que indelevelmente nos forma, esses outros degraus são sempre degraus acima do nosso.
Mas em tempos de crise somos obrigados a olhar também, e com uma atenção que grande parte de nós
nunca havia experimentado, para os degraus abaixo. Ainda que pudéssemos ter a garantia de que nunca
seremos obrigados a descer os degraus, não podemos saber como actuarão os que já foram forçados a fazê-lo e os que não terão alternativa senão vir a fazê-lo em breve.
Dependendo do desespero e da revolta dos que se vêem privados do direito fundamental que o trabalho
é em qualquer Estado de direito, dependendo do desespero e da revolta daqueles que se vêem privados dos apoios sociais em nome de um imperativo corte na despesa pública de um Estado bulímico, tudo pode
estar em causa.
Ainda que se acredite que não fomos trazidos até esta crise pelo sistema de valores vigente, é pelo menos inquestionável que o sistema não foi capaz de impedir que a ela chegássemos. É portanto legítima a suspeita de que o sistema também não será capaz de tratar convenientemente os estragos. Nesse sentido não será
abusivo pensar que a crise nos predispõe para a mudança e, mais importante, nos predispõe a aceitar que
nessa mudança tenhamos em consideração os mais desfavorecidos, aqueles a quem paradoxalmente
prestamos pouca atenção em tempos de maior abundância.
Em tempos que não são de crise, o acordo tácito que geralmente é aceite (e no qual grande parte de nós
descansa a consciência) é o seguinte: é o rendimento que cada um de nós tem que determina a medida do
sofrimento que conseguimos evitar. Considera-se que alguém que não tenha rendimentos que lhe assegurem um bem-estar mínimo é ele próprio responsável por isso. Em geral não é considerado merecedor de
qualquer tipo de apoio e é estigmatizado. Em tempos de crise, esta lógica altera-se completamente.
Desaproveitar pois a crise, não tentando criar um modelo melhor, é tanto mais imperdoável quanto éverdade que os tempos de escassez determinam grande sofrimento a uma grande quantidade de pessoas.
Convém ressalvar que ainda que sejam interesses individuais (o tal medo de descer a escadaria ou do que o que a massa que a desce pode fazer-nos) que nos levem a questionar o sistema de valores existente e a
encarar como positiva a possibilidade de mudá-lo, é importante que não sejam esses interesses individuais a determinar a mudança nem a forma como queremos mudar. A mudança terá de ser feita de acordo com princípios éticos e é cada vez mais urgente a declaração dos mesmos.
...
Um elemento descontente pode tornar-se um elemento agitador. É pelo menos um elemento potencialmente agitado.
Em tempos de abundância, esses elementos correspondem a situações isoladas facilmente neutralizadas
pela ordem vigente. Não constituem uma ameaça e os vários poderes prosseguem ignorando-os.
Em tempos de crise há muitos elementos descontentes, muitos elementos agitados. A Física diz-nos que quando isso acontece o resultado é um aumento da temperatura do sistema, sendo isso o mínimo que
pode acontecer. O movimento de cada um dos muitos elementos, de cada uma das muitas partículas, é um
movimento aleatório. Se cada partícula for polarizada é fácil, muito fácil, criar um fluxo. E um fluxo tem um
poder enorme. Criador ou destrutivo.
Em tempos de crise a massa dos descontentes, dos predispostas à mudança, dos disponíveis a responder
a novos apelos, é um material poderoso. E não falta quem queira utilizá-lo. Para o Bem e para o Mal.
Não falta quem queira manipular-nos. E é fácil manipular seres sós. A solidão é-nos intrínseca. Existimos
encerrados num corpo e muito do que sentimos é impartilhável. Nem que seja a dor. Existimos encerrados
numa vida e muito do que vivemos é impartilhável.
Nem que seja porque os outros tendem a afastar-se quando passamos por dificuldades. As dificuldades,
tal como as doenças, confrontam-nos, de forma cruel, com a nossa condição de seres sós. Nessas alturas os outros acusam-nos ou apiedam-se. De uma maneira ou de outra estigmatizam-nos. Nessas alturas, os outros reflectem a nossa consciência da solidão, intensificam-na.
Em tempos de crise há muita gente a passar por dificuldades semelhantes e “mal de muitos, conforto de
tolos”. E na verdade todos temos qualquer coisa de tolo e a tolice acentua-se em relação àquilo que instintivamente nos consola. Quando a desgraça é generalizada, as dificuldades correspondem mais a uma
experiência de integração do que de estigmatização.
Partilhar uma desgraça, ainda por cima com muita gente, em vez de agravar a solidão, ilude-a. Ser vítima
de uma epidemia não é a mesma coisa do que adoecer sozinho.
E é potenciando esse processo de iludir a solidão que a ordem vigente, os poderes instituídos, se defendem
da mudança. Em tempos de crise, a ordem vigente tende a despertar-nos valores que nos façam sentir menos sós, que nos façam sentir pertença de um grupo. A ideia de Família e a ideia de Deus, que habitualmente nos aconselham, não são suficientes em tempos de crise. É então que surge recorrentemente a
Pátria glorificada.
Em nome dessa Pátria, propõem-nos que aceitemos como inevitáveis os sacrifícios a que nos querem obrigar. É-nos oferecido o aconchego de nos sentirmos parte de um grupo valioso em troca da pacificação ou da domesticação.
Voltando ao campo da Física: se uma partícula livre for sujeita a um disciplinado sistema de forças, deixa de apresentar um movimento aleatório: deixa de contribuir para o aumento da temperatura do sistema e não engrossará qualquer fluxo que se queira criar. Passa a fazer parte de uma estrutura ordenada a que
se chama cristal. Aprisionada na posição que lhe é destinada na rede cristalina, a partícula passa a exibir
apenas ligeiros movimentos vibratórios. A partícula tem agora um papel a desempenhar e esse papel é o de
ocupar aquela posição. Deixou de ser livre, mas já não está só e pertence a uma estrutura tida como valiosa
porque o caos é mais comum do que a ordem, e tende-se a atribuir mais valor ao que é mais raro. Fuligem,
carvão, grafite, vidro ou diamante não são mais do que átomos de carbono. A forma em que eles se apresentam menos livres é aquela que dá origem ao material mais raro e tido como mais valioso: o diamante.
A Pátria é muitas vezes apresentada como um diamante quando um Estado quer disciplinar os seus
cidadãos. Como a solidão a que estamos condenados cria muitas vezes a necessidade de nos sentirmos pertença de qualquer coisa, a Pátria funciona como um
eficaz sistema de forças.
Com a devida exaltação da Pátria, os poderes e os seus cúmplices sabem que adoptaremos pacificamente
medidas de restrição inaceitáveis e que podemos ser desviados da vontade de mudança ou seduzidos ppara
mudanças de que não conhecemos a face verdadeira.
A presunção de que somos livres para aceitarmos o que afinal nos é imposto tem tanto de formalmente
legitimador como de anestesiante. Muitos esgotam a prática da liberdade na possibilidade de dizer publicamente o que lhes passa pela cabeça. A liberdade de exprimir opiniões é apenas uma das faculdades de cidadania efectiva num regime democrático. O mais incapaz dos governantes cedo aprende que a enumeração de queixas e o papaguear de insultos por si só não veiculam qualquer reivindicação e consequentemente não periga a manutenção da ordem vigente.
O mais ignorante dos governantes também sabe que quanto menos instruídos forem os cidadãos mais
facilmente serão usados, manipulados e domesticados. E os nossos sucessivos governantes têm feito um
bom trabalho nesse capítulo, porque em vez de terem apostado na educação apostaram na sedução. Educar
um cidadão é autonomizá-lo, é dar-lhe um poder cujo
exercício pode resultar na rejeição do governante. Seduzir um povo permite tornar as dificuldades presentes suportáveis com a promessa inexequível de um oásis futuro. O mais incapaz dos governantes sabe que
um povo que não é ensinado a pensar por si mesmo apenas actua de uma de duas maneiras: como animal
domesticado a chicote ou como macaco de imitação. O menos corrupto dos governantes sabe que o povo ideal para ser manipulado é aquele a que foi previamente incutido o fascínio pelos vencedores, tenham eles
vencido no que quer que seja, como quer que seja. Um povo não educado é um povo pouco confiante em si mesmo, e para esse quanto mais duvidosas forem as razões por que os seus governantes venceram menos
excluído se sentirá da possibilidade de ele próprio vingar.
...
Mas há mais razões que podem comprometer ou confundir a mudança para um modelo melhor.
Se é verdade que os tempos de maior escassez de recursos fazem com que prestemos atenção a quem é
mais desfavorecido do que nós e nos dispunhamos à mudança, também é verdade que os tempos de crise
acirram a defesa dos interesses individuais.
Se respondermos apenas aos interesses individuais, o medo de podermos vir a ficar numa situação pior do
que aquela em que estamos e a consciência de que temos menos oportunidades e que os recursos são mais escassos levar-nos-ão a querermos ser protegidos em relação a grandes sacrifícios, levar-nos-ão a não estarmos interessados em que essa protecção seja estendida a grupos de que garantidamente não viremos a
fazer parte.
É fácil de ver que este entendimento pode originar comportamentos sexistas, racistas, especistas, xenó-
fobos, homofóbicos, ou quaisquer outros comportamentos discriminatórios.
Em tempos de maior abundância existe alguma vergonha por parte dos poderes em relação a certos instintos ou a certas opiniões eticamente condenáveis. E essa vergonha é útil porque, ao obrigar-nos a mentir
ou a omitir em nome de um Bem a que ainda não aderimos instintivamente, contribui para que essa adesão instintiva aconteça nas gerações futuras. Mas em tempos de crise, em tempos de excepção, os poderes
desleixam-se e muitas vezes a vergonha perde-se.
Sem a justificação da crise atrever-se-ia, por exemplo, o Cardeal Manuel Monteiro de Castro a fazer declarações que podem ser entendidas como uma defesa de que as mulheres devem ficar em casa em vez de trabalharem fora? O comentador Rebelo de Sousa a fazer declarações que podem ser entendidas como
uma defesa de que os nossos interesses são prejudicados quando se tenta regular a indústria alimentar de
forma a minorar o sofrimento dos outros animais? O primeiro-ministro a dar a entender que somos piegas
e que o espaço da lusofonia é grande para os que não têm trabalho cá? O Presidente da República a expor
os seus receios de que o rendimento que aufere (largamente superior ao da grande maioria daqueles que
representa) não chegue para manter o nível de vida a que considera ter direito?
Estes “deslizes” resultam evidentemente do ambiente nervoso e emotivo que a crise origina. Mas são importantes porque revelam que, confessada ou inconfessadamente, há sofrimentos que não valoramos ou que não valoramos tanto. Por isso é importante que a Ética tente delimitar de forma clara a fronteira do universo daqueles de que importa contabilizar o sofrimento e que estabeleça, caso entenda haver lugar para isso, ponderações a esse sofrimento. Enquanto isso não for feito, os governantes terão uma boa desculpa para condenarem e salvarem quem entenderem. Sim, porque a escassez que a crise acarreta determina que vai ter que se escolher sobre o que não devia ser susceptível de escolha. Talvez governar seja em grande parte isso: escolher sobre o que não devia ser susceptível de escolha. A crise mostra isso de forma despudorada.
Despudorada e sofrida, porque os sacrifícios serão maiores.
E há coisas que não queremos que nos façam mas que estamos dispostos a ignorar que sejam feitas a outros, ou a permitir que sejam feitas a outros, ou mesmo a advogar que sejam feitas a outros. Convém identificar essas coisas. Convém identificar esses outros. Será que egoisticamente permitiremos que esses outros sejam elementos de grupos a que garantidamente não pertenceremos? Será que cobardemente permitiremos que esses outros sejam aqueles que não sabem ou não podem defender-se? Se em tempos de abundância a tentação de ceder a este facilitismo é grande, em tempos de crise é ainda maior. Haja, pois, coragem para tratar estas questões. Haja generosidade para deixar que seja o Bem a fazê-lo.
Texto de Dulce Maria Cardoso
Partilhado pelo jornal "O Espelho"
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