13.8.12

Postal ilustrado da Mouraria I



Segura e formosa Helena,

Todos os caminhos deste Verão levam-me à Mouraria, já assumi este fado destas férias, e alegremente o aceito. Ontem aqui vivi um pico de excitação, que partilho contigo e com quem se imiscui, sem vergonha, nesta nossa correspondência.
Por volta das 18:30 de ontem encontrava-me prostrada frente à igreja da antiquíssima capela Sra. da Saúde, para viver a aventura que tinha sugerido às cegas à tua filha. Como vês sou alguém responsável, apenas com alguns problemas de cronologia. 
Encontrei-me entre cabeças brancas, muitas e trocistas, um amigo céptico e resmungão com vontade de estar antes a ouvir jazz ali para os lados da torre de Belém, duas guitarras portuguesas, um senhor distinto de fato cinza e uma senhora que me fazia pensar na minha querida tia-avó Idalina, vestida de um xaile preto e de outras coisas. O nome não foi trocado para comprovar a veracidade deste postal.
Começaram a cantar fado à vez, e eu a sentir um baque honesto aqui no meio do meu generoso apesar de pequeno peito, o meu amigo dizia-me em silêncio que afinal eu tinha tido razão em arrastá-lo aqui. Comecei a sentir vontade de me descalçar. Quando acabou informaram-nos que afinal não tinha acabado e tudo iria continuar no largo da Severa. 
Um gentil guia gratuito levou-nos a sítios recônditos da Mouraria. Se soubesses o quanto eu gosto de sítios recônditos. E de guias gratuitos. Entrei num prédio com cinco andares de azulejos com cenas bíblicas, onde te vou levar da próxima vez, não sei se estás a perceber mas és o meu Kaminer privado, descalcei-me, vi uma porta manuelina que com a pressa da reconstrução depois do grande terramoto foi montada ao contrário, sorri, vi restos da muralha fernandina, admirei-me, até vi os burros a passear no meios das hortas que já não existem, suspirei. 
E no largo da Severa vi o sol. 
Cantou-se desgarradas à séria, o público conhecia um dos fados de cor, o do bairro vizinho, o Alto, as mais atrevidas foram dar um beijinho repenicado aos fadistas no fim e a mim não me apeteceu mais fingir que não estava a chorar. Não é preciso muito para me fazer chorar, é certo, mas desta vez fi-lo à luz do dia como uma valente. E foi bonito. 
Sinto-me sempre muito viva quando choro à frente de todos sem enxugar as lágrimas e estou descalça na rua. Não sei porque não faço isso mais vezes.

Sempre tua e cada vez mais descalça,
Carla R.

PS : Muitos picos de excitação têm sido sentidos estas semanas na Mouraria. Para que este postal não seja um postal de orgasmos múltiplos, que muito nos cansam apesar de tudo, resolvi dividi-lo em dois ou três. Não te afastes muito do carteiro esta semana, é só o tempo de descobrir como te explicar a passada noite de sexta feira sem usar a palavra cuecas-à-mostra-na-rua-do-alecrim.

PS2 : Para quem quer mais informações aqui deixo o link gratuito

11 comentários:

  1. até sei que prédio é esse de cinco andares com azulejos...é ao lado da polícia, não é? era um antigo... ah que me foge a memória, um antigo convento acho eu, e que depois também foi usado para miúdos de colónias de férias se não me engano.
    Essa associação faz umas visitas guiadas à mouraria com pessoas entendidas em história urbana de olissiponense que explicam estas coisas. Outra coisa que mostraram foi que no passeio de calçada portuguesa em frente a essa capela está o desenho da "sombra da fachada" da capela. E concordo que estes pormenores da nossa adorada lisboa libertam as emoções..

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  2. Sim, é ao lado da PSP, é o colégio dos meninos orfãos. Também falaram sobre a calçada à volta da capela. Gostei mesmo muito desta visita, mas a libertação foi mesmo despoletada pela musica. E os meus filhos têm andado a fazer-me terapia involuntaria. Não sei quem me fez assim, a esconder emoções e a reprimir vontades, mas eles andam a explicar-me que não tem mal soltar-me mais e deixar-me ir. Tenho sido muito feliz nesta desaprendizagem.

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  3. óptimo! não te conheço (só aqui da blogoesfera mesmo) mas sou completamente a favor de desaprendizagem de repressão emocional.
    :)
    (eu moro nos anjos e tenho duas amigas que moram na mouraria por isso vou muito por essas ruas, vielas e becos - até quase tenho receio quando daqui a uns anos a reabilitação da CM estiver mais avançada, que o bairro perca essa identidade que tem)
    Fado e exemplo de reabilitação que faz perder a piada: no largo do intendente todo janota agora fui ouvir o Camané (num palco montado para o efeito) e de facto, não é a mesma coisa...

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  4. Também tenho medo da reabilitação à bruta, quase tanto como do esquecimento e da falta de cuidado que deixa cair os prédios. O edifício em obras atrás dos fadistas é a casa da Severa, não sei como é que estava antes de começarem a reconstrução, mas visto de fora mais parecia que se está a construir algo de novo, pela raiz, espero que tenham respeitado ao máximo o que havia. Também estive no Largo do Intendente para ver o La bohème, não conhecia bem o Largo antes e apesar de ainda haver muitos prédios a cair, pareceu-me estar a haver um esforço positivo. Já em relação ao Martim Moniz, e apesar do mercado das fusões ser uma boa ideia, na prática não apetece ficar por lá, parece um "no man's land" ou coisa do género.

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  5. Eu também tentei descrever essa sexta-feira, mas com a palavra cuecas-à-mostra-na-rua-do-Alecrim, e ainda não consegui...

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  6. Tens que começar, eu vou a meio, agora tenho que sair e daqui a pouco ja temos post. Ja me arrependi de não ter escrito sobre a Russendisko, não vou cometer o mesmo erro duas vezes. E dai, quem é que me vai impedir de escrever sobre a Russendisko agora ? Venham eles, venham eles !

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  7. Pois, escreve sobra a Russendisko!
    No teu caso, só se perdem os posts que não escreves.

    (Adorei!)

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  8. Eram cinzentas ou verdes, que já não me lembro?

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  9. Tenho que começar a acabar de fazer promessas-posts, arranjo sarilhos gratuitos.

    Gralha, não estarás, por acaso a confundir com a palavra cuecas-à-mostra-no-largo-do-Chiado ?

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  10. Detecto aqui um fetiche exibicionista, na forma particular de cuecas e zonas emblemáticas de Lisbia?

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  11. Agora que me falas disso ...
    Vou averiguar e na eventualidade positiva de tal facto, seras a primeira a ser notificada. Obrigada pela alerta, nunca tive um fétiche e sempre muito o desejei.

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