21.3.25

Vizinhos


Não sei das vossas vidas, mas o que eu mais receava no meu mundo inteiro - antes que isto tudo desse para o torto - na altura em que ainda vivia em casa dos meus pais, era que a minha mãe cruzasse uma vizinha quando íamos às compras. Se fosse mordida por um cão vadio, compreenderia, ele tinha sido maltratado toda a vida, era um mecanismo de sobrevivência, se gozassem com os meus cabelos na escola porque eram tão diferentes, tudo tranquilo, eu mesma não sabia o que fazer com eles. Podia até ser injustamente acusada de usar cábulas, assumiria pelas vezes que usei e não fui apanhada. Agora, a minha mãe pousar os sacos das compras ao encontrar a vizinha do terceiro direito é que não me fizessem isso. Limites muito próprios e só meus eram ultrapassados. Um vazio frio e temporariamente eterno arrancava-me a paz e a alegria, portanto tão naturais no início da minha adolescência. Não tenho absolutamente nada contra a vizinha em causa ou nenhuma outra, de resto. Quase sempre tive vizinhos que souberam ser bons, ou seja, invisíveis e não me aborreceram, toleraram os meus barulhos e eu os deles. 

Na verdade, pouco me interessa as questões de vizinhança, fui uma única vez a uma reunião de condomínio e nunca lá mais pus os pés, seja em que país fosse. Declarei que tudo o que decidissem estava bem para mim e pagaria a minha parte, contudo nunca contassem comigo para assuntos de administração que com certeza iria desaparecer dinheiro sem que eu tivesse explicação para tal. Já é o que me acontece na vida pessoal, sempre foi e sempre será. Perder dinheiro é algo que aceito, perder tempo é que não consigo, peço imensa desculpa caros co-proprietários, mas está sol e agora vou para a praia ou está chuva e quero ouvir de olhos fechados uma música que eu cá sei para ir com o estado do tempo. 

A minha mãe é todo um outro universo, adora verificar contas, resolver problemas com o elevador e chamar o senhor para trocar a fechadura do prédio. Gosta muito de saber como está a vizinha. Não que seja bisbilhoteira, isso sou eu, mas falar com as vizinhas no hall de entrada é algo que considera como um hobby em toda a sua plenitude. O pior era a minha posição neste cenário. Não queria interromper a conversa para pedir as chaves e ir embora daquele calvário. Não queria ser chata. Não queria aborrecer a minha mãe, que me parecia tão feliz em amena cavaqueira sem interesse nenhum. E, acima de tudo, eu já era uma pessoa optimista e achava que aquilo estava quase quase a acabar. Optimismo pueril, vão e estúpido. Perdi anos de vida naquele hall.

A certa altura da minha vida, achei oportuno gastar cinquenta euros semanais em conversas com uma psicóloga, uma das conclusões que tirámos dali foi que o que mais temia na vida era o tédio. A morte fascina-me, os desgostos de amor magoavam-me mas, no fundo, achava-os belos, as desilusões de amizade uma boa aprendizagem, as más venturas profissionais é porque iria encontrar algo melhor depois e tinha que fechar portas. Mas, por favor, não me obriguem a estar onde não quero estar. Isto eu não consigo, que me perdoe o António Variações, que tanta falta nos faz, abençoado.

No prédio onde vivo agora, e que era para ser um local temporário, mas que se está dia a dia a transformar numa casa de sempre, há seres humanos de vinte e trinta anos que me tratam por "senhora" nas escadas, quando eu quero apenas pôr o lixo lá abaixo. Esta realidade da idade a pesar é algo recente e completamente anacrónico, pois raramente fui tão inconsequente, irresponsável e infantil como agora. Sinto como se algo em mim estivesse a emitir sinais erróneos malgré moi para despistar, talvez as rugas e os cabelos brancos sejam a razão de tanto desnorte. Como se a passagem do tempo fosse indicador de algo em mim. O absurdo de tudo isto! 
Há uma bizarra coincidência nesta minha actual morada, é que graças a ela quase fui vizinha da Calita. Um quase que me parece extraordinário. Mas uma vez mais, o tempo não está em sintonia com a minha vida. Quando a minha vizinha preferida morou neste prédio eu morava em França e agora que moro cá, ela mora perto do Porto, num lugar onde nunca vivi. 
Estou, portanto, condenada a viver como se fosse uma senhora, numa realidade que não é a minha. Com vizinhos que me desrespeitam no quotidiano com o seu respeito.


                                                
PS: E não consigo falar, nem deixar de falar, do resto da realidade de outra vizinhança mais alargada e coletiva que não reconheço - não sei como se faz para se viver adequadamente numa época tão distópica, que não espelha nenhum valor que jurava universal, nem ao menos alguma humanidade. Ficará para sempre um mistério de como vivemos nós num mundo tão avesso ao nosso. Como é que a bolha ainda não rebentou e como vai ser quando tal acontecer. Como continuamos a dançar, falar, beijar e respirar?


Para lerem mais textos do colectivo "Largo" sobre vizinhos :


(em actualização)



   



1 comentário:

  1. Não termos sido vizinhas por tão pouco, foi mesmo uma bizarria!

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