19.2.15

O mundo visto daqui

Estamos a morar demasiado perto do Assi Ghad para que nos levem de auto-rikshaw sem nos enganarem e demasiado longe para nos orientarmos, já conseguimos perder-nos 3 vezes e ainda não fizeram 24 horas que aqui chegamos. Falhamos por um dia a celebração do casamento de Shiva com Parvati, mas a festa ainda se sente no ar. Todos nos falam de como foi bonito o festival, o Ganges todo iluminado, a fila para se prestar homenagem no templo a Shiva, mas que havia muita, muita gente, mesmo para os padrões indianos. Imagino o pior.
Desistimos do nosso sentido de orientação e decidimos seguir um professor de informática de trabalha perto do Ganges. A Índia transformou-me numa pessoa desconfiada, não falo livremente, respondo às perguntas cordialmente. Não tenho emprego. Não tenho religião. Não somos casados. Não sei falar hindi. Sim a Índia é um pais muito interessante - sempre à espera que nos peça uma doação para uma causa nobre, para comida para os pombos ou uma espreitadela rápida sem compromisso numa loja de têxteis. Mais uma vez enganei-me. Na Índia perdi o meu sentido de orientação e o meu olho para as boas pessoas. No final, tive vergonha da minha desconfiança e esperei que tivesse passado por timidez.

Sabemos que o Ganges esta à nossa frente, por causa das velas que flutuam, esta muito escuro e um nevoeiro cerrado. Ao nosso lado cinco mulheres cantam uma oração, um sadhu com um macaco acorrentado procura um lugar na rua para dormir, os turistas estão deslumbrados e vestidos como os turistas se vestem na Índia, um grupo de adolescentes esta a gozar com um guru que esta a ensinar os seus estudantes a fazer uma espécie de yoga, sentados numa cadeira, o Francês esta à procura do repelente de mosquitos e os meus filhos estão a perguntar-me se podem molhar os pés, como se estivessemos numa praia na Normandia. Falo-lhes de karma, de reencarnação e de doenças dermatologicas e de como é fantástico finalmente estarmos aqui. De todos os anos que fantasiei com este lugar. Deixei-o para o fim, queria compreender a India primeiro. Compreender a India. Que piada mais naïve.
Enquanto esperamos pelo jantar com vista para o Ganges, que não se vê, vamos escolher livros de banda desenhada, desistimos de grandes eruditos e estamos a conhecer melhor a historia da Índia e da sua mitologia através de desenhos com balões. Viajar com crianças é um excelente álibi.

No dia a seguir acordamos às 5 horas, tudo parece começar às 5 horas em Uttar Pradesh. Em jejum, perdemo-nos nas ruas de Varanasi, mas conseguimos chegar a tempo para assistimos à cerimonia matinal.
O pooja. Musica dos sinos, do gongo, nevoeiro, cântico de mulheres, a dança lenta e precisa de homens vestidos de laranja, o fogo das velas, o fumo do incenso. O Ganges. Varanasi. Impressiona. O rio lava os crentes do mau karma, e o ambiente nas margens lava-me o cinismo. In di a. Aqui, parecemos estar n o centro do mundo. Se um dia voltar a procurar o sentido de humanidade, da vida ou dos anos oitenta, deverei aqui voltar. Por enquanto, pouco senso tiro de tudo, mas consigo identificar-me com o caos que aqui reina.

Entramos num barco a remos, ao nascer do sol, quando o nevoeiro começa a desaparecer. Homens quase nus e mulheres completamente vestidas mergulham nas águas castanhas do Ganges. Ao lado, roupas secam nas escadas, quatro lavadeiras batem lençóis molhados contras uma pedra, o esgoto junta-se ao rio ao lado. Uma família junta-se à volta de uma fogueira que vai durar três horas, o tempo que o seu ente querido se transforme em cinzas. Ao lado um monte de cinzas de madeira e de restos humanos é varrido para formar um monte. Uma mulher morta deitada numa cama espera a vez. E os barcos de turistas. E os barcos de turistas. E os barcos de turistas.
Todos querem estar aqui. Ver. Alguns fotografar. Um homem que se ensaboa sentado num degrau reclama com um grupo de turistas chineses stop photo. Desculpam-se e dizem que não o fotografaram a ele. Ok, ok, go. Konnichiwa, ouve-se do outro lado da espuma de sabão. We are not japanese, thank you. O barco afasta-se, o homem dos remos a rir-se. Não devíamos estar aqui. Com os nossos olhos passivamente abertos e as nossas maquinas fotográficas com écrans LCD. Não devíamos estar aqui. Varanasi é um lugar único, impressionante. Gosto de poder estar aqui. De mostrar as meus filhos, assim, tão cedo tanta diferença, tanta igualdade. Mas não devíamos estar tão aqui. Não tão perto. Não por todo o lado. Não devíamos ter visto estas pessoas a tomar o seu banho. A despedir-se dos seus mortos.
O turismo. Aproximamo-nos e confiamos. Pensamos que não nos vão mostrar o que não podemos ver, mas quando damos por isso, estamos dentro do quarto de um desconhecido, no meio de um funeral, entre as gotas de um duche. Temos de ter mais cuidado.
Os outros não vão fazê-lo no nosso lugar. E depois pagamos.

Quando voltamos a terra, estamos cheios de fome e no nosso hotel prometeram-nos um pequeno almoço à séria. Os miúdos ouviram esta parte. Breakfast. Não chegamos a acordo com um mototaxi que nos quer levar o preço de uma volta ao mundo em rickshaw por poucos metros, mas temos receio de nos perder novamente. Um homem de rickshaw de bicicleta aproxima-se, não sabe falar inglês, mas pede a um homem que passa para lhe dizer que é mais barato. Não quero estar em cima daquele banco, eu, as minhas pernas, a minha barriga, enquanto este homem trabalha. O homem que fala inglês diz-nos que é um bom preço, que este homem também merece trabalhar, que os mototaxi lhe tiram o trabalho todo, que não é justo. Acedo. Não sei o que fazer. Compro flores a crianças ou não. Isso vai tirar-lhes da escola ou vai ajudar a família ? Ando de rickshaw  de bicicleta ou não. Ajudo este homem a ganhar dinheiro ou estou a fazer parte de um sistema autoritário, em que os mais pobres são os mais explorados ? Não me sinto bem em cima daquele banco, sinto-me gorda, pesada, inútil, a viagem parece que não acaba nunca. No final, damos ao homem o dobro do que queria o homem da mototaxi, mas eu sei bem que o dinheiro não resolve tudo.

Ao pequeno almoço discutimos como vamos fazer melhor daqui para a frente. Não chegamos a nenhuma conclusão e comemos porridge com mel.

1 comentário:

  1. Ao ler o que escreves sobre a Índica, vêm-me à cabeça as palavras de um professor de faculdade que me disse um dia "A Índica é muito duro". E lembro-me de ver isso mesmo nos olhos da minha prima que aí esteve uns meses com uma ONG. Se por um lado me aguças a curiosidade, também tenho medo do que sentiria aí. Há lugares que mexem connosco, não é?

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