3.1.15

Um certo tipo de paraiso

O Chile que vamos visitar começa lentamente a acabar, já percebemos que não vamos à ilha de Páscoa, deixamos para trás a ilha de mármore por explorar e muitas outras ilhas e razões para aqui voltar. Ainda não saímos do Chile e já sonhamos com ele. Somos patéticos, forçamo-nos a partir.
Estamos, finalmente, na cidade que mais desejei em toda a América do Sul e, como planeado, não estou a controlar nada, nem mesmo o pouco que queria.
Desde que li a Oda a Valparaiso, que ando a fantasiar com estas colinas, estas casas, estes teleféricos em que quero subir um a um, estes autocarros dos anos 50 ainda em circulação, este porto que me faz pensar em Lisboa, e que lembrava a casa aos marinheiros de São Francisco. Estas gentes, esta desordem, esta loucura prometida. A minha vinda aqui começou, ainda nem sequer tinha atravessado o Atlântico.

Valparaiso, qué disparate eres, qué loco, puerto loco, qué cabeza con cerros, desgreñada, no acabas de peinarte, nunca tuviste tiempo de vestirte, siempre te sorprendió la vida.

Instalamo-nos, por engano, numa casa familiar, que acreditávamos ser um hostel sem pretensões. Mas a família dos donos ainda não se foi embora das festas de fim de ano, e de repente somos uma espécie de penetras com autorização. Somos os únicos hospedes, umas dez crianças correm com grande alarido no segundo piso. Os meus filhos no meio, não querem saber do que se passa no mundo para nada. Esta vida, dentro destas paredes, parece chegar-lhes. Neste momento, ouço-os a rir muito alto das piadas em espanhol, com sotaque chileno, que os outros contam. O meu filho jogou à bola e agora está a jogar xadrez com um outro menino - nunca pensei que este jogo fosse tão útil, a minha filha está rodeada de meninas a brincar com carros, o Francês está ao telefone a falar com a família toda que ficou em França. E eu, três dias que quero ir à Sebastiana. Quero conhecer o cadeirão onde se sentava Neruda a olhar o mar, ver os livros que coleccionava e a fotografia de Walt Whitman que escolheu desta vez. Quero ver os copos coloridos em que servia a água e os quadros que decoravam as suas paredes.

Estamos a viver no alto do Cerro Concepcion por uma semana, vemos do canto da janela um bocadinho do porto, uma casa que me parece de zinco, só que está completamente enferrujada. As gaivotas estão loucas, o gato entra e sai de casa como quer e pede-me um bocado do meu jantar, mas eu tenho fome. Os turistas espreitam para dentro da sala, como eu fiz em todas as casas do paseo Atikson. O esquentador perdeu grande parte das peças, mas funciona, as fechaduras das portas são para enfeitar e o rádio toca com cassettes a musica que costumava ouvir nos anos 90Usamos a cozinha que não é para os hospedes, atropelamo-nos para lavar os pratos, mas alguém nos serve o pequeno almoço às horas combinadas. Sem falta. E provo a melhor marmelada da minha vida.

Houve, com certeza, um erro de cálculo ou de casting e eu estou a aproveitar. A aproveitar-me. A casa está desarrumada, ninguém manda calar os miúdos, uma criança entrou no nosso quarto, que não tínhamos fechado à chave, para ver o que se passava, os meus filhos nunca mais vão aceitar estudar e eu continuo sem saber de que terra sou, mas é-me cada vez mais claro o tipo de terra a que quero pertencer.
O caos mais completo. Sinto-me, evidentemente em casa, ando descalça e desloco-me em pijama, todos parecem achar tudo muito natural.
E é. Ou deve ser.

Pronto, Valparaíso, marinero, te olvidas de las lágrimas, vuelves a colgar tus moradas, a pintar puertas verdes, ventanas amarillas, todo lo transformas en nave, eres la remendada proa de un pequeño, valeroso navío. La tempestad corona con espuma tus cordeles que cantan y la luz del océano hace temblar camisas y banderas en tu vacilación indestructible.

Quando for hora de almoço, espero conseguir arrastar alguém para um restaurante, fazer-nos perder de propósito e no caminho visitar o bairro da Belavista, ver as casas abandonadas, as casas arranjadas, os musicos na rua, os murais de artistas, as ruas das noites que cheiram mal e estão mal grafitadas, descer as escadas que sobem, subir as que descem. Que eu também tenho direito ao meu recreio.
E um texto sobre Valpo merece que volte aqui com fotos dignas do que vejo. (Esperem ai um bocadinho).

7 comentários:

  1. Honestamente o texto basta-me. Um bem haja para ti e para a tua família!

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  2. Sim, já vimos tudo! Aproveita bem o teu tempo de recreio! : )

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  3. que bom! e sim, consigo ver o tudo o que aqui escreves, com ou sem imagens...

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  4. Suspiro mesmo sem fotos. Espero que o recreio seja dos grandes, ou que avarie a campainha.

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  5. Ahahahahaha !
    Caramba,que as minhas fotos devem ser mesmo uma bela treta.
    "Não, não precisamos, muito obrigada Carla. Deixa-te estar soosssegadita. Relaxa, filha."

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  6. O texto diz tudo, aquece-nos com os afectos. Continuação de uma excelente viagem e obrigada pela partilha.

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