7.11.14

No mundo da ilha do sol


Passamos a fronteira a pé. Sacos de milho para um lado, cholitas para outro. Nós e os nossos filhos sempre em frente, em breve a Bolívia. Os dois retratos de Evo Morales. afixados na parede dos serviços de emigração. Uma faixa e dois sorrisos. Em breve serão três.
Os norte americanos a pagar uma taxa suplementar de 120 dolares. Para quem não sabe, as malas serão jogadas por terra. O problema é deles. E claro que não há multibanco nas paragens. Apenas amendoins. E com sorte pipocas de milho gigante.

Copacabana, a segunda desta volta, a primeira em absoluto, fica a 8 quilómetros. O lago Titicaca é a praia de um povo que não tem mar. mas o lago é frio e poucos se aventuram a mergulha-lo.
Amanhã é dia de eleições e não vai haver transportes. Onde ficarmos hoje, ficaremos até depois de amanhã. Mas Copacabana não nos apetece, com os ses bares, restaurantes e hotéis para gringos. Para "nós". Fugimos. Ninguém sabe quem nós somos. E às vezes, mesmo nós temos duvidas.

A fuga é uma viagem de duas horas de barco. Lento, como todos os barcos que navegam no Titicaca. Vamos para o principio de tudo, ou pelo menos de muita coisa : la isla del Sol. No barco ninguém esta de férias. O viajante da viagem mais curta, deixou a casa por seis meses. A maior parte partiu por um ano. Um casal de mulheres do Quebeq, ficam felizes com os nossos filhos viajantes : existe esperança para viajantes pós maternidade. Somos nós a luz. Nós, que durante tanto tempo estivémos num túnel.
Um francês de Marselha anda nesta vida há três anos e não sabe quando vai mudar. Peut être jamais. Jamais parece razoável para quem se encontrou. Na viagem.
Todos têm dicas a dar, lugares onde vamos ser felizes. Muitas das vezes o melhor é o que ainda não viram. Aconselham-nos o que se aconselham. Fazem-nos votos, que querem para eles. Há sempre uma próxima viagem, um desejo ou, pelo menos, uma vontade de não parar.

Saímos no porto do norte da ilha. Uma praia, seguida de outra praia. Casas inacabadas há décadas. Um ou outro hostal rudimental. Ninguém sabe onde vai dormir, nem quanto tempo vai aqui ficar.. Alguns montam tendas na praia, sem sequer enxotar o burro. No caderno do check-in, onde se escreve o nome, o passaporte e a profissão, lê-se várias nacionalidades, mas quase sempre a mesma actividade : No job, vagabundo, traveller, lo que queiras. A liberdade que em casa, muitas vezes se esconde de vergonha. Fora do sistema, tudo é mais leve.

No final do dia, os miúdos, que são os meus, jogam com os miúdos da ilha. E com quem mais queira jogar : dois adultos e um cordeiro que anda a treinar marradas. De um lado do campo de futebol, a praia onde porcos e burros passam o dia, do outro, a cordilheira dos Andes ao fundo, com neve no topo. Tiro fotografias, mas sei que nenhum filtro, nem nenhum panorama vai conseguir captar o que vejo. Abro muito os olhos, estas imagens vão poder salvar-me um dia.

No dia a seguir subimos até à pedra sagrada. Até ao que havia antes dos descobridores espanhóis chegarem. Antes da Virgem da Candelabria. Antes de se trocar a adoração ao Sol e a Lua, por imagens de senhoras brancas envoltas em renda. Cruzamos vacas. Crianças a pastar porcose lamas. Praias vazias. Montanhas sagradas. Colocamos pedras em cima de pedra à frente da pedra sagrada.
O Sol e a Lua. Se um dia, for fora de mim que procurar uma solução, procurarei o sol e a lua. Adorar e temer. Venerar.

Os mesmo filhos brincaram às escondidas num templo Inca vazio, antes que o barco por um dia, chegasse com os turistas que visitam tudo à hora do calor. E eu olhei para aquilo tudo, para o dourado da pedra sagrada, para o azul do lago, para as ruinas vazias e pensei que se existem tantas maneiras diferentes de se viver, deve haver uma especial para mim. Porque, parecendo que não, a vida vai continuar depois desta volta. E, muito provavelmente, quatro paredes brancas, nunca mais me vão parecer suficientes.

7 comentários:

  1. Agora deixaste me sem fôlego. e de coracão pequenino. Bem hajas por estares a mudar o meu mundo. <3

    ResponderEliminar
  2. Os teus filhos nunca irão esquecer este ano escolar!!! ;)

    Inveja boa 'desse inverno' passado no calor... por aqui a neve já pinta o Monte Jura!!

    Boas aventuras!!

    ResponderEliminar
  3. "existem tantas maneiras diferentes de se viver", com isto disseste tudo. Eu por aqui comecei uma mudança meio drástica para deixar as quatro paredes do escritório e acho que vou recorrer a essa frase muitas vezes nos próximos tempos. Pode ser que alguém entenda.

    ResponderEliminar
  4. Que espetáculo! Onde começou a vossa viagem? Gostava de acompanhar desde o princípio através das suas palavras. Estou a adorar "ouvi-la". Obrigada

    ResponderEliminar

Pessoas

Nomadas e sedentarios