4.10.14

El Condor


Saímos de Arequipa em direcção ao Canyon de Colca. Três dias de reestabelecimento depois.
O centro de Arequipa dá-se bem às ambições fotográficas de quem por lá passa, tudo parece funcionar como deve ser, às vezes até melhor, mas ao aproximarmo-nos dos subúrbios começamos a perceber do que nos falava o señor que estava ao volante. Pobreza, fome e poeira. Muita poeira.
Num paralelo absurdo com o filme homónimo de Ricardo Meireles, passamos pela Cidad de Dios. Casas baixas de tijolo aparente, estradas de terra, pessoas a andar kilometros ao sol. E ao po.
Tudo temporário. Tudo na mesma há demasiado tempo.
Fala-se no colectivo dos muitos cartazes eleitorais que cobrem paredes, árvores, carros. Todos iguais, todos corruptos, todos com promessas feitas para serem esquecidas. Ninguém é crente destas palavras. 
A corrupção é um crime maior quando a realidade é tão dura. Um milhar roubado onde existem muitos milhares de euros, não é o mesmo milhar roubado a milhares de pessoas sem escola, hospitais, nem agua.
Um livro de caricaturas mostra turistas maravilhados diante do Machu Picchu, dinheiro a cair a rodos para as mãos do grupo Accor, da companhia Peru Rail e outros grandes engravatados e gordos. O povo em baixo, como parece ser sempre o seu lugar, à volta de uma torneira que pinga a conta gotas.

Afastamo-nos da cidade, passamos uma mina.
Afastamo-nos de tudo. Afastamo-nos da poeira.
Vulcões ao fundo, neve no topo. A estrada continua até à Reserva Nacional de Salinas y Aguada Blanca. Uma placa indica-nos a proximidade de vicoñas. A primeira que vemos está longe, mas é a que mais emociona. A que fica.
(Para sempre?)
A primeira que se vê, a que se fez esperar mais tempo, a que foi mais dificil : a que tem mais valor.
E todos a trabalhar por uma vida mais fácil, mais rápida. Que absurdo.
Pára-se o carro mais tarde,  um rebanho de lamas e alpacas atravessa a estrada. Podemos tocá-las. A pastora anda à procura de duas lamas. Encontramo-las a poucos metros.

Doi-me a cabeça. Maldita altitude. Bebo maté de Coca e dou bombons de coca aos meus filhos. Agora eu sou uma mãe que dá coca aos filhos. Que insiste. Um ratito de coca, cariño ?
Subimos a 4905 metros de altitude para ver os vulcões, os extintos e os que matam de vez em quando, em troca de terras férteis. O meu filho corre para fazer festas numa lama, duas vezes o seu tamanho, não tem medo de nada. Excepto se o nada for um caniche que ladra muito alto. A lama cheira-lhe o cabeloem silêncio. Cheira bem, decide não sair do pé dele.

Descemos a uma aldeia onde se fala predominantemente quechua, a lingua dos Incas. A maior parte das escola ensina na língua espanhola. Não entendo nada. Não entendo também porque é que os povos colonizados, quando conseguem reaver a sua autonomia, não colocam a língua em primeiro lugar. Falar espanhol depois de tudo, parece-me um contrasenso enorme. Uma continuação da colonização. Assim como a religião, continuar a adorar um Deus importado. Imposto. Forçado. Quase todos os dias assistimos a uma procissão. A uma senhora que se benze depois de lhe comprarmos pulseiras.
Penso na cultura Inca, no quechua, nos seus deuses ligados à natureza. Mesmo que o império Inca tenha durado pouco mais do que um século, parece-me mais próprio a este povo de tranças negras e voz amistosa.

O meu filho joga futebol com um rapaz que fala quechua, ficaram empatados 2 a 2. Ficou com um resultado igual a de um descendente Inca.
Esta frio cá fora, mas na nascente demasiado quente, que cheira a enxofre, como o Inferno, deixamo-nos estar. Completamente cozida adormeço, dói-me a cabeça. Preciso de coca.

Acordamos às 5 horas para ver os condores, ninguém reclama. Nem eu.
Esperamos uma hora na Cruz del Condor, ninguém aparece. Andamos até outro miradouro, à espera de melhor sorte. Aparecem finalmente os condores, dois, três, quatro. Fizeram-se esperar e têm razao, agora damos-lhe mais valor, abrimos mais a boca, suspiramos de admiração.
El condor ! 
Estamos cansados, adormecemos na estrada de volta a Arequipa e dormiremos melhor no autocarro-cama para Cusco.
Adeus poeira, talvez um dia sintamos a tua falta.

6 comentários:

  1. Que maravilha Carla!!! Fico maravilhada com os teus textos. Um dia gostava de ver tudo publicado. É linda esta vossa viagem contada através dos teus olhos e do teu coração. Belo!!!!! Beijocas

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  2. Esta viagem é de descoberta de desníveis de altitude e também de bem-estar social. Espero que no fim nos salves a todos a consciência com algum tipo de mensagem de esperança (tu consegues, vá, faz-nos o jeitinho).

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    1. O desnivel de bem estar social também existe em Lisboa e Paris, infelizmente não me foi preciso andar muito para o presenciar. Quanto à mensagem de esperança, a ver vamos, mas não deve estar muito longe do cliché sobre ajudar o proximo. 5Falta passar à acção).

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  3. que lugar belíssimo. que lugar tristíssimo.

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  4. Foi assim mesmo que me senti, tudo ao mesmo tempo.

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