21.9.16

Aquele horizonte que entretanto se perdeu


Chegámos a Shangri-la, nem sem a que horas, mas não foi a bom tempo. Os meus primeiros momentos foram de arrependimento, fica a confissão, para dar o mote. A gare rodoviária de Zhongdian foi a mais inóspita gare de todo o nosso mundo, que vai sendo cada vez maior. Cheirava muito pior do que a cigarro velho. Não havia sala para não-fumadores e ninguém parecia importar-se com o que se escreve nos pacotes de cigarros na nova Europa. Recordei-me da gare de Setúbal como se fosse a minha madeleine de Proust. Do outro lado do globo, na minha memória certamente danificada, chegar ao terminal rodoviário de Setúbal fazia-me lembrar entrar numa sala de uma tia-avó particularmente prendada em bolachas de manteiga, que insistia para que tomasse mais uma taça de chá.

Não tinhamos qualquer indicação de distância entre a gare e o centro, ninguém sabia falar inglês e os motoristas de táxi, todos vestidos de preto e com um cigarro no canto do lábio, queriam levar-nos as malas para dentro de 4 bagageiras diferentes. Estavam tão excitados com a nossa chegada que tivémos a certeza que íamos ser enganados. Recusámos a ajuda forçada de todos, com mais ou menos sorrisos, consoante a maior ou menor insistência.

Sentámo-nos nos bancos azuis de plástico duro da sala de espera, ainda atrodoados do trajecto, a comer bolachas salgadas, que tinhamos comprado a pensar que eram doces. De vez em quando, um de nós levantava-se numa tentativa de estabelecer contacto verbal com alguém, e no regresso era recompensado com mais uma bolacha. Na verdade, o que estava em jogo eram apenas alguns euros a mais, que seríamos certamente cobrados pelo motorista de táxi. Mas não nos apetecia ser levados por tansos. Temos o nosso orgulho. E tínhamos muito tempo - é sempre mais fácil manter a dignidade, quando se tem tempo para isso.
Luxos.

Acabámos por decorar os caractéres que significam centro da cidade e apanhámos, mais ou menos às cegas, um autocarro. Saímos onde nos indicou o motorista, mas parecia que estávamos numa zona industrial com pavilhões de madeira. A estrada um caminho de lama.
Tinhamos lido que Shangri la era apenas um truque de marketing do hábil turismo chinês, que se tinha aproveitado dos poucos elementos do livro de James Hilton - Lost Horizon - para afirmar que ali é que era o verdadeiro Shangri la. O Stéphane tinha falado com um viajante que lhe tinha dito que a cidadela velha tinha ardido recentemente e que quase não havia nada a ver. Posto isto, eu disse que queria ir na mesma. Se a liberdade não foi feita para se seguir impulsos e se cometer erros, então não sei para que serverá.

No caminho, vimos os arrozais omnipresentes a transformar-se em pastos verdes escuros, as pequenas casas brancas com telhado de telhas, em casas enormes ocres de arquitectura tibetana e os nossos primeiros Yaks a pastar, não sei a substituir o quê nem quem.
Pensei alto, para que todos me ouvissem no minibus, que nem que fosse pelo que viamos da janela já tinha valido a pena. Mas ninguém acordou.

Saídos do autocarro, encaminhei a minha família para a estrada da esquerda, que me pareceu bem. Nesta viagem, às vezes, calhava-me a responsabilidade de estudar o próximo trajecto, saber se valia a pena ou não ir e levar a coisa em avante. O meu método científico de estudo e concretização é conhecido como improvisius.
Fui andando e perguntado onde era o centro, ignorando sempre as respostas, porque não me convinham, até que começámos a ter fome. Entrámos num café que tinha fotos do sítio onde eu queria estar, muito diferentes da estrada de lama onde me situava com a minha família e entrei disposta a aceitar o prato do dia. Tenho amor à aventura.
A um canto, o filho da dona do restaurante, brincava com legos falsificados e prontamente aceitou partilhá-los com os meus filhos. O mito do egoísmo da criança única é mesmo um mito.
Tive que ouvir um comentário sarcástico em francês de como era admirável a minha forma de educar os meus filhos para o inesperado e dei de comer às bocas que me rodeavam, com dumplings bastante aceitáveis. Em português parece que se diz bolinhos de massa de pão, não podia pensar em tradução mais deslavada.
Quando saímos começava a ficar frio e escuro, e aceitámos o primeiro quarto sem janela que encontrámos disponível.

Acordámos com dores nas costas e depois de tomármos um pequeno-almoço igual ao jantar e da minha filha ter deixado um desenho num post-it colado à parede, fomos ao enorme moinho de preces dourado que víamos da rua.
O meu filho continuou a sua estranha incursão mística-motriocinal num universo muito dele, baseado nos rituais religiosos. Se na India tinha sido hindu-praticante-não-crente, na China seria budista-praticante-não-crente.
Acreditaria que tal fosse sacrilégio, fosse eu dada a acreditar.
Aquele enorme moinho de preces dourado precisava da força de sete pessoas para se mexer, com os meus filhos, nove. Mas eles não tiveram noção da sua nulidade ritual. Acreditaram que contaram para enviarem mantras  para os ares, e tendo em conta que estamos a falar de religião, acho que isso é o essencial.

A aldeia, para além daquela colina com o templo budista e um moinho, tinha um interesse relativo, restaurantes de pão de vapor, alguns albergues. Saíndo do centro, as casas deixavam de ser tradicionais em madeira, para passarem a ser francamente feias, mas as pessoas mais acolhedoras e interessadas em nós. E um pouco de atenção, por vezes, calha bem.



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