20.2.15

Na estrada para Jodhpur

(Ainda no Rajastão)


De Udaipur a Jodhpur escolhemos uma estrada pouco usada, para vermos um outro tipo de mundo. O motorista também veio, que eu tenho boa vontade, mas alguma dificuldade em assumir carros e outros veículos em contra mão, vacas e outros animais no meio da estrada e crianças e outras alegrias a correr em todos os sentidos, mas isso sou eu, que sou dada a miudezas. Tenho, no entanto, observações a fazer quanto à condução indiana. Nas primeiras semanas, achei que estavam todos loucos, é verdade, que ninguém respeitava regras, que era uma selva. Mas agora, depois de muita estrada atravessada, muitos passeios com filhos e, às vezes malas, à beira de ruas sem passeio, mudei de ideia. A verdade é que me sinto aqui em segurança, por vezes dou pela minha família literalmente no meio do trafico e podemos continuar seguramente a andar até um lugar mais apropriado, sem nos sentirmos em perigo. As regras existem, mas são mais humanas, mais intuitivas. Nem sempre são as que estão escritas no papel, é um outro código. A buzina não é para mandar vir, mas para proteger. Please horn. Blow horn. Horn if your horny. A rua não pertence aos carros, mas a todos. O meu cérebro de europeia, nascida em África, demorou algum tempo a perceber, mas no final acabou por preferir movimentar-se a pé na Índia. Mesmo sem passeios, nem passadeiras, nem semáforos. Vamos andando, avançando, confiando no nosso instinto e no dos outros. Acaba por ser poético.
Não faço ideia da poesia presente nos dados estatísticos da mortalidade na estrada. Este texto é apenas sobre sensações e sentimentos.

Normalmente, escolhemos os autocarros públicos para nos movimentar. Grandes bocados de lata enferrujados, sem vidros nas janelas e grandes enfeites ao pé do condutor. Nem sempre é evidente travar-se uma conversa honesta quando se chega a um novo pais, muitos nos vêm como uma fonte de rendimento e a simpatia é do tipo que se compreende, mas numa viagem de cinco horas é diferente. Partilhamos lugares de três com cinco pessoas, caímos uns em cima dos outros quando há uma travagem brusca, seguramos um bébé, enquanto o pai vai buscar um saco que ficou no passeio e tentamos acomodar as grandes malas uns dos outros à frente. Laços criam-se nas situações rodoviárias. Gosto desta forma de viajar, mesmo que não seja a pessoa desta família que mais aproveita. As crianças ganham rebuçados, elogios e às vezes companheiros ocasionais. O Francês tem longas conversas sobre o futuro da Índia com um estudante de engenharia, a dura vida num templo com um monge e planos agronómicos de um homem que vem de receber um terreno. Eu existo pouco. Dizem-me que os meus filhos são muito bonitos ou muito espertos. Ou que me devia casar. E acham muito estranho que não tenha religião. But you believe in Jesus Christ, right ? Dou por mim a elaborar complexas teorias para explicar esta minha estranha forma de vida. Quando até aqui, era assim, apenas porque sim. Não é facil ser-se uma pessoa simples num autocarro indiano.

No nosso caminho para Jodhpur, a descoberta faz-se do outro lado dos vidros.
A erva começa a escassear, aproximamo-no do deserto Thar. Começamos a ver camelos a puxar carroças e a esperar o dono à porta de uma loja. Vemos um macaco a abanar os ramos de uma árvore, para que as vacas possam comer as folhas, como se estivessemos a viver num conto infantil.
Vejo passar mulheres muito magras, muito bonitas nos seus saris laranja, rosa, amarelo a transportar grandes maços de troncos ou a trabalhar no campo, a varrer a estrada, a carregar tijolos, vejo crianças a brincar nas obras, outras a trabalhar. Vejo outras, com mais sorte, vestidas com o uniforme da escola, a regressar a casa. Nunca pensei vir a gostar tanto de uniformes.
Passamos por escolas e por mais discretos que tentemos ser, interrompemos sempre a aula, há sempre um pequeno distraído a olhar para a janela - hello - às vezes é o professor.

No templo jainista de Ranakpur perdi um bocado da minha fé na humanidade. O templo é lindíssimo, o mais bonito de todas as religiões que já vi, todo branco, todo esculpido, construído à volta de uma árvore. O Jainismo prona a não violência, ahimsa, que inspirou Gandhi na sua luta contra o império britânico e o não absolutismo, anekantava, que seria o que bastava para que se perdesse tanto tempo e tantas vidas com a intolerância religiosa, com que ainda temos que lidar. O não absolutismo, lembra-nos o que já todos devíamos saber, que existem sempre vários pontos de vista, pelo que aceita varias opiniões e a existência de varias religiões. A anekatanva, encoraja os jainistas a ouvir e considerar a opinião dos rivais. O anekantava existe há mais 2800 anos, já podíamos ter feito qualquer coisa com este tipo de reflexão. Esta semana, 2015, 21 pessoas foram decapitadas porque não eram da religião dos que os mataram. A humanidade a não querer ser humana. E andamos nisto, como se estivessemos começado ontem.

4 comentários:

  1. Se calhar a simplicidade é sempre uma ilusão. E a humanidade é parva, desleixada nisso de ser humana.
    (olha, há maneira de o Francês contribuir com um guest post? Ou as crianças, ao estilo composição? Gostava de ouvir outras perspectivas. Agora que não tenho blogue sinto-me à vontade para mandar bitaites acerca da linha editorial dos dos outros)

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  2. Post fantástico. Adoro ler os seus textos. Obrigada por partilhar.

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  3. Cheguei há uma semana de Goa. Uma parte do meu pensamento continua no bocadinho que conheci da India. E esta descrição é tal e qual o que vi e senti, ao ler parece que estou lá :) que loucura ... :)

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