28.6.13

A culpa é da realidade

Há muitos, muitos anos atrás, numa terra mais longínqua para mim do que para vocês, fiz uma ronda das religiões. Não fui esquisita quanto a credos, igrejas, seitas, confissões, santos ou deuses. Assisti a missas em catedrais enormes, lindíssimas e vazias, vi um espírito a encarnar num apartamento no centro da cidade, descalcei-me e coloquei lenços escuros na cabeça quando foi preciso. Ouvi boas historias, ouvi muita treta, conheci bons oradores, quase adormeci uma vez.
A conclusão deste "estudo" fez-se esperar tanto, que entretanto passei a outra coisa. Ilícita, certo, mas eficaz e rápida.

Numa destas sessões, sentada numa sala apinhada, num quarto andar sem escada, a ouvir um guru com tudo em cima e mais um cabelo branco lindíssimo até à cintura, a humanidade foi-me apresentada como algo mesmo, mesmo recomendável. Tudo se ia compor, tinha é que deixar de comer carne. No final do discurso foi passada a palavra à audiência. E uma rapariga, vinte e pouco, metro e meio, começou a falar, para muito dificilmente se calar. Tudo no seu discurso era castanho, solido, às vezes mole e não cheirava a rosa. O tema andava à volta do futuro da humanidade. O guru tentava interromper, mas não era suficientemente assertivo. Optou por continuar sentado, não conseguiu inverter a tendência. E não é sempre assim ? A verborreia continuou contra tudo e contra todos, do apocalipse ao aquecimento global, dos abusos de poder à corrupção, da violência doméstica à tortura e à ditadura camuflada, mais a desigualdade entre ricos e pobres e a passividade geral perante os sem abrigo.

Hoje não me olhei ao espelho. Estou com receio de me estar a transformar naquela rapariga.

Estarei eu a ser mais lúcida do que os outros a prever catástrofes sociais e ataques fatais à democracia ?
Ou ter-me-ei transformado na lunática do cartaz "Isto vai acabar mal" e estamos a fazer todos muito bem a pensar na praia e nos caracóis ?


Créditos : Manifestação no Brasil por  Kety Shapazian, na Turquia por  Gurcan Ozturk e ontem em Portugal através da Tugaleaks.

15 comentários:

  1. Não és pessimista, lês a actualidade como ela é, tão simples quanto isso. Vamos de mau a pior, mas com protetor solar.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Essa do protector solar é boa para o teu cartaz, eu levo o meu com qualquer coisa sobre "ter-se chegado tarde por causa da greve e os caracois já estavam frios por causa desses vândalos que não fazem nada e depois o mundo vai acabar tal como o conhecemos" e juntas criamos "o cantinho ao pé da esplanada no Terreiro do Paço das previsões". Assim uma espécie de speakers corner com cerveja fresca.
      So espero que haja tremoços também.

      Eliminar
  2. Qual é o problema de vermos o mundo tal como ele é? O mundo é violento e injusto, mas temos que aprender a viver nele tal como é... e digo isto muitas vezes, que me sinto como cassandra, eu acho algumas catástrofes tão visíveis e eminentes, mas ninguém quer saber " ai,lá estás tu, tens que ver o mundo com outros olhos, o mundo é lindo, as pessoas são boas".... pois, pois, e Pai natal existe...

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. A questão é essa, é o que é que o mundo é ?
      Ontem estava a falar com um português aqui em França que me dizia que ia comprar uma casa em Portugal agora que os preços estão baixos e acrescentou "que agora é que era o bom momento, que Portugal tinha batido em baixo e que agora ia começar a melhorar" (e os preços a subir), olha, ri-me a noite toda.

      Eliminar
    2. É mesmo para rir, infelizmente ainda vai muita gente passar fome em Portugal... Em 2008 fui-me embora com muita mágoa, mas não havia hipótese, era sair ou ir naufragando, nessa altura ainda diziam que o barco ia bem, eu já via muita água a entrar, não é ser como os ratos que são os primeiros a fugir, mas ser um tripulante que esbraceja e grita e toda gente ignora, então decide pegar num bote e ir, deixando-os com muito pesar à sua sorte... agora estou numa ilhota e acenam-me agarrados aos destroços e não posso fazer nada, apenas ficar na praia a olhar...

      Eliminar
    3. É mesmo para rir, infelizmente ainda vai muita gente passar fome em Portugal... Em 2008 fui-me embora com muita mágoa, mas não havia hipótese, era sair ou ir naufragando, nessa altura ainda diziam que o barco ia bem, eu já via muita água a entrar, não é ser como os ratos que são os primeiros a fugir, mas ser um tripulante que esbraceja e grita e toda gente ignora, então decide pegar num bote e ir, deixando-os com muito pesar à sua sorte... agora estou numa ilhota e acenam-me agarrados aos destroços e não posso fazer nada, apenas ficar na praia a olhar...

      Eliminar
    4. olha, ora apago, ora publico em duplicado...

      Eliminar
  3. Ah! E sou agnóstica e sem crenças espirituais nenhumas, tenho moral e ética (não digo que sou ateia porque ateismo é uma forma de fé, acreditar fielmente numa verdade absoluta e defende-la com todos os dogmas). E é claro que é possível prever o fim do mundo e continuar a comer tremoços, até acho uma boa ideia... resiliência...

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. "Prever o fim do mundo e continuar a comer tremoços", boa, podes levar esse cartaz ! ;)

      Eliminar
    2. ...bem gostava de andar com cartazes, mas em Andorra são proibidas manifestaçoes públicas de política ou de arte ou do que quer que seja, é proibido mendicidade e as embaixads recusam-se a celebrar casamentos homossexuais para "não ferir susceptibilidades", acabei num país fascista encapotado, o que não faz uma mãe para dar comida aos filhos!

      Eliminar
    3. Não fazia ideia que em Andorra fosse assim. Mas olha que quando falo que estou pessimista não me refiro apenas ao aspecto financeiro, longe disso, mas (e talvez mesmo sobretudo) no que diz respeito aos valores democraticos.

      Eliminar
  4. Por enquanto, vou prevendo catástrofes de segunda-a-sexta e faço praia com tremoços aos fins-de-semana. Chamem-lhe hipocrisia, eu chamo-lhe a minha rica vidinha, que é só uma e minha.

    ResponderEliminar
  5. Pois que é uma organização como outra qualquer. Eu vou fazendo alternâncias com bastante caos à mistura e sem qualquer noção de ritmo ou produtividade, para grande pena minha. Os tremoços às vezes também alterno com cerveja, depende dos dias.

    Quanto ao que anda a passar-se entretanto, apreciava que esperassem pelo inicio da proxima semana para lançarem a revolução, dava-me muito mais jeito.

    ResponderEliminar
  6. A lucidez é tramada. Essencialmente porque não tem caminho de regresso. E agora?...

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Pelos vistos, agora tremoços...
      Eu estou operacional em Lisboa, actualmente aguardo instruções. Estou pronta !
      (não sou fã de praia, uma boa revolução seria o álibi perfeito para me livrar de areia colada no corpo e da água gelada do Atlântico. Que ideia mais marada para se passar o tempo livre.
      E assim, como assim, a "silly season" já durou o ano todo, bem que se podia fazer um intervalo ou um ponto final no Verão)

      Eliminar

Pessoas

Nomadas e sedentarios