14.2.25

Atraso de vida


No chão da sala, com o sol de Inverno em cima, sonho acordada com uma pintura que um dia gostava de fazer e provavelmente nunca virá a luz deste dia, nem de um outro.

A preguiça sempre foi um dos meus temas preferidos, vou mesmo muito longe quando a meto à obra. Por ser preguiçosa, já faltei a muitos eventos importantes, já cheguei muitas vezes atrasada, não fiz tudo o que devia, não fui resiliente, não estive nunca nem perto de um burn out, não conquistei nenhum título, nem medalha. O meu nome será rapidamente esquecido, a humanidade não pode contar comigo para a cura de nenhuma doença importante, pode-me esquecer para uma obra que se torne clássica com o tempo, nenhum jardim será cultivado. Nunca me apresentarei correctamente maquilhada ou totalmente depilada. Todo o trabalho que fiz, fi-lo contrariada. A humanidade, tal como a conhecemos, nunca existiria se todos fossem como eu. Este atraso de vida. Saberiamos muito pouco, teriamos que imaginar quase tudo. Haveria arte que não serve para nada, por todo o lado e ninguém nunca caçaria nenhum animal com as próprias mãos. Viveriamos de maçãs caídas no chão, meio nus, morreriamos jovens e por todo o lado se dançaria ou não. Iriamos a pé para todo o lado e teriamos preguiça de voltar. Nem na pré-história, a humanidade esteve tão atrasada.

Os meus atrasos de vida, são, para mim, os meus avanços. Pelo que nunca irei a lado nenhum. Ou irei só e apenas a todo o lado. Não calculam o quanto isto irrita muita gente.

Atrasei a minha vida quando fui mãe, não pertencia a uma bolha onde a maternidade era valorizada. Atrasei-a quando fiz um ano a viajar e nunca fui tão longe. Arraso a minha vida sempre que me apaixono. E apaixono-me tantas vezes. Nesses momentos, não produzo, não escrevo, não pinto, não nada. Fico noutro mundo, a olhar o que me rodeia onde se produz tanto, onde se preocupa com tudo e com tão pouco.

O resto das pessoas nunca enlouquece como eu. O mundo tem sempre objetivos e astúcias. À minha volta todos conseguem continuar serenos, enervados, coerentes, eficazes, raivosos, estrategas, atentos ou presentes. E depois há os outros loucos, e esses respeito muito. Os diagnosticados. Os que são o que são, com ou sem paixões ou preguiça.

Interessa-me muito a preguiça e o tempo que passa devagar, os prazeres que nos desviam do que deve ser feito. Tenho cada vez mais um desinteresse para todos os domínios que têm que ser. Não sei o que pensar de mim mesmo e no atraso de vida que sou.

Quando vejo aqueles atletas de alta competição que ganham as medalhas de ouro, penso nos atrasos de vida que não se permitiram para chegar onde chegaram. O ouro é uma compensação de tudo o que perderam. Não chega.

O ouro não me interessa, sou outras as tentações a que facilmente cedo. Idealmente, dedicaria a vida à arte, mas o que me vejo fazer nos meus melhores dias é fazer da vida a minha arte.

Avanço muito devagar no que tenho que fazer. Pinto por empreitadas quando posso ou consigo, mas se alguma tentação me vem chamar quase sempre eu vou. Pago o preço muitas vezes. As oportunidades que não aproveito, as multas que os burocratas não perdoam, os sermões que os materialistas me pregam. Mas o preço forte, aquele que aparece no final, esse não o vou pagar.

Só com a vida muito atrasada se tem tempo para a viver.




Este texto foi feito para um coletivo de escrita, recomendo os atrasos de vida dos outros membros:

Calita escreveu no Panados e Arroz de Tomate

Rita Dantas escreveu no Boas Intenções

Maria João escreveu no A Gata Christie

Joana escreveu no Azul Turquesa

Mariana escreveu no Gralha Dixit

(em actualização)

1 comentário:

  1. Que saudades..... Que bom ter te de novo aqui e ali e acolá, nesses não lugares onde tudo o que pensamos não acontecer, nasce. Beijos , Madalena

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