31.10.14

Na ilha dos homens que tricotam


Chegamos a um dos portos de Taquille ao mesmo tempo que o colectivo, que veio de Puno. O nosso barco parece de brincar, enquanto Félix rema para nos aproximarmos do muro. Saltamos entre cordas, de barco em barco, sobre uma pequena parte do lago molhado de Titicaca. Ninguém cai, porque tudo acontece como Félix planeia. Alexandro Flores esta à nossa espera, com um gorro impressionante na cabeça, e um sorriso de dentes verdes, das folhas de coca mastigadas em permanência. A tradição de Taquille concentrada num homem só. Félix assim o tinha dito. Despede-se de nos em pé no barco, antes de ligar o motor. Hasta luego ! E ficamos com a certeza que havemos de nos rever um dia.

Com as mochilas às costas, seguimos Alexandro nas imensas escadarias do porto até ao cimo da ilha. Alguns metros suplementares se somam aos quatro mil acima do nivel do mar. A altitude não ajuda e sentamo-nos a meio para recuperar o fôlego. Fala-se quechua, manyara e com sorte um pouco de castelhano. Crianças arrumam as pulseiras e pequenas figuras em lã que tentaram vender aos turistas. 1 sole cada. No chão, os meus filhos encontram e começam uma nova colecção de fios de lã coloridos. Projectos ambiciosos lhes enfeitam o final do dia.
Respiramos fundo, porque custa respirar de outra forma e continuamos. Alexandro sobe, com pranchas de madeira às costas, para a casa nova do filho que estão a construir com a ajuda de vizinhos. Ha três meses que estão naquilo.
Ha lã por todo o lado. Lã que fala, lã que brinca, lã que aquece, lã que enfeita, lã que confere estatuto, lã que entretém, lã que coloca comida nas mesas.
Lã.

Cruzamos a cada minuto ovelhas, senhores a tricotar gorros e senhoras a torcer fios de lã. Parece um lugar irreal. Como se Homero tivesse relatado viagens nos antipodas da Grécia. Mas estas impressões, se calhar, são apenas influências da descrição que Félix nos tinha feito, enquanto estavamos no barco, com o lago Titicaca à nossa volta.
Imagens de Taquille na minha cabeça, antes de ver fotos, antes de pisar terra firme. Começou o encantamento enquanto a ilha se tornava cada vez maior, na viagem de barco. Todos deviam ter um bom contador de historias e lugares à mão.
Uma necessidade fisiologica, uma prioridade para uma vida melhor.

No cima da ilha, sentados à sombra, desfolhamos as micas plásticas do dossier que Alexandro nos emprestou. Diplomas, reconhecimentos e artigos de jornais sobre o seu mérito. Alexandro é uma celebridade mundial, que nos faz as camas de novo, enquanto admiramos a dimensão da sua fama. Fala-nos de como tem sorte, conhece o mundo e a velocidade em que gira e vive aqui, onde nunca nada muda.

Antes do pôr do sol, damos a volta à ilha. Vemos três crianças a brincar com um cordeiro. O meu filho gaba-lhes a sorte de poderem brincar assim, todos os dias à frente do lago, a correr à frente de um cordeiro, a fazer o que lhes apetece.
Lembro-lhe a sorte que ele tem, de estar a fazer a volta ao mundo, de tudo o que já viu e ainda vai ver e experimentar, que estas crianças muito provavelmente nunca saíram sequer da ilha. Mas a verdade é que acredito na sua felicidade. Nas suas gargalhadas e na sorte de se crescer e viver aqui. Mesmo que seja para sempre, sem nunca daqui sair. Sem electricidade, sem agua corrente, sem internet, nem muito dinheiro. Acredito que aquelas crianças sejam mesmo felizes.
Pensando bem, o meu filho tem toda a razão. Dir-lhe-ei mais tarde, quando perceber como é que vamos incluir um cordeiro no nosso núcleo familiar parisiense.

Há uma musica desafinada por toda a ilha. No recreio da escola, um grupo de adolescentes e crianças ensaia uma dança tradicional. Rapazes solteiros de gorro vermelho e branco feitos por eles, andam roda com instrumentos musicais, por enquanto, desafinados. Um homem de agulhas de tricot na mão, pergunta-nos em casa de quem vamos dormir e indica-nos o melhor caminho para as ruínas Inca. Ficamos a saber que é casado, pelas cores das lãs que tricota enquanto anda. Se fosse alguém de responsabilidade politica, usaria cores mais garridas. Alexandro explicou-nos tudo. As mulheres não estão a fiar a lã, enquanto andam - como eu tinha explicado à minha gente - mas a torcê-la para que fique mais resistente e se possa tecer. Os homens não tecem, apenas tricotam.
Alexandre começou a tricotar aos seis anos, a idade do meu filho, que me pede com urgência agulhas de tricot. A irmã promete-lhe ensinar tudo o que sabe. Cinco minutos devera bastar, acrescenta.

Quando cai a noite, andamos com uma lâmpada na mão. Evitar pedragulhos. Buracos. Taquille é negra. E as estrelas brilham como nunca. Talvez um pouco para nós, desta vez..

11 comentários:

  1. Absolutamente extraordinário e uma vista de cortar [literalmente] a respiração!!! Esse cachecol (ou será outra 'coisa'?!) é lindo...lindo...lindo!!!!!!!

    Boas descobertas!!!!

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    1. Não é um cachecol é um gorro, tricotado com quatro agulhas pelo Alexandro Flores.
      E, sim, é lindo.

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  2. Tenho uns livros da Abby Franquemont. Artista têxtil norte americana que foi educada no Perú (os pais eram antropólogos), ela conta que a primeira coisa que fez quando chegou lá em criança, foi aprender a fiar. Era considerado uma perfeita inutilidade não saber fiar ou tecer.

    Adorei esta tua história! Espero que tenhas sempre tempo e vontade para o continuar a fazer :)

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    1. Nem em todos os sitios (aldeias ou cidades) sevê muita gente a tricotar. Cusco é a cidade grande onde se vê mais gente a trabalhar a lã, a fiar (ou torcer, agora não tenho a certeza), a ticotar nas ruas. Mas Taquille leva esta historia para outro nivel : toda a gente faz qualquer coisa com a lã, quase em permanência. Os homens andam e tricotam ao mesmo tempo, os velhotes estão sentados na praça principal a tricotar, as crianças torcem a lã enquanto vão caminhando e falando - é algo automatico. As mulheres torcem a lã. E vimos de perto uma senhora a trabalhar num tear milimétrico (ainda coloco aqui fotos), ficamos a olhar para o que fazia durante uma meia hora e não percebemos nada do que estava a fazer. O resultado era incrivel, estava a fazer uma espécie de calendario. Procura informações sobre esta ilha, acho que a Unesco a tem numa lista por causa da trdição textil, e começa a fazer plano. Este é o place to be para ti.

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  3. Nunca tinha ouvido falar nesta ilha. Parece mesmo de ficção. Que mundos extraordinários vocês andam a descobrir.

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    1. Havia outra ilha ao lado : Amantani.
      E agora fiquei com pena de não a termos ido visitar...
      Olha, fica para a proxima.

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    1. Sim e não. Depende. Gostava de passar férias nesta ilha mais vezes, ficar mais tempo, aprender a fazer qualquer coisa com a lã, as ovelhas, os intrumentos musicais e a truta. Agora, viver, viver...

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  5. Venho aqui sonhar Carla ... !
    Continua tudo a ser irreal e absolutamente fantástico!

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  6. contem tudo.....estamos a gostar muito deste cheirinho!.....e estes registos estão a transbordam de memórias paralelas que um dia vos vão fazer melhor recordar outras coisas que nós não conseguiremos ver! isso é muito precioso! estes momentos serão um auxiliador de memórias maravilhoso!

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