30.6.14

Com estas mãos escavarei a terra

Continuam as despedidas na Normandia. Acabaram há pouco, as comemorações do desembarque e alguns vizinhos ainda hasteiam as bandeiras francesa, americana e inglesa. Tiveram sorte, pouparam-lhes a casa, os aliados. Contas por alto, foram 18 000 toneladas sobre a Normandia em dois dias. Cidades, vilas, portos, fabricas desapareceram no dia D.
Na casa dos extintos bisavós, vamos roubar framboesas e cassis aos pássaros, as pêras e ameixas já não vão ser para nós. Estaremos longe. Mas vocês vão mesmo cometer essa loucura ? 
Arranco uma courgette gigante do chão, vou ter que lhe tirar a pele e os caroços, deixaram-na tempo demais na terra.
Junto-me ao grupo depois do almoço. Debaixo do pomar lê-se, discute-se, faz-se judo, dorme-se.
Olho o jardim infestado de dentes de leão. Quem nos aloja baixou os braços. Foram anos de luta contra a  natureza, o vento e o vizinho que não trata do que lhe pertence. Anos a arrancar raízes.
Encolhem-se os ombros a dada altura.

Não sei se foi do sol, das poucas horas de sono, da viagem, mas o dente de leão foi a minha obsessão no sábado passado.
Dentes de leão, bruxinhas sopradas na infância - oh, quanta inocência ! - pissenlit.
Comecei por me sentar à beira da minha chaise longue. Puxei por uma folha, trouxeram-me ferramentas, explicaram-me detalhes sobre a raiz. Arranquei o meu primeiro pissenlit sentada. Pissenlit arrancado de raiz. Ajoelhei-me, larguei o que me tinham dado - com as mãos agarrava as folhas e puxava. E às vezes a raiz quebrava, às vezes cedia e vinha toda. Raiz no ar. Pissenlit arrancado. As unhas cheias de terra, os joelhos castanhos. Mais um pissenlit. Mais outra raiz agitada aos céus. 
Pissenlit, dentes de leão.No meio da tarde, pensei numa metafora entre o que fazia e as raizes que ando a desbastar para fazer viagens e manter o meu estado de emigrante, ha mais de uma década, mas desses detalhes vou pouparei. Descansai.
Buracos na terra, círculos castanhos mal desenhados na relva. Um pisenlit arrancado de raiz. Não houve alumínio, não houve desodorizante, não houve anti-transpirante que me valesse. Estava sozinha.
Eu contra o próximo pissenlit.
O molho de folhas e raízes arrancadas a crescer. Mais um pissenlit arrancado. Aaargh !
Não lanchei.
Arranquei até me forçarem a entrar para um banho.

Bebi o apéro desta vez. As mãos ainda castanhas, apesar do sabão de Marselha. Dois copos. Doíam-me as pernas e as costas. Bebi o vinho da região do Loire. Três copos frescos, que tivesse percebido. Bebi o digestivo. Bebi outra vez.
E à noite, quando me deitei, adormeci satisfeita. 
Tinha percebido o êxodo rural e o alcoolismo do trabalhador do campo.

4 comentários:

  1. Fui mais rápida que o bloglovin... achei que devia haver texto novo por aqui. Ainda hoje enquanto praguejava por estar fechada num escritório pensei se seria mesmo miúda de meter as mãos à terra ou se tudo não passa dum estou bem aonde não estou.

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    1. Isto é um terreno complexo. Temos que ter cuidado com os desejos do exotismo.
      Atentar na frase : Os prazeres do campo são uma invenção de quem vive na cidade.

      Sigo, por isso, o caminho da experimentação. Parecendo que não, sou uma mera calculista, para grande pena minha.

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    2. Nada como experimentar. E pensando bem é preferível ser uma pessoa todo-o-terreno.

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    3. Uma pessoa todo o terreno : gosto desse conceito.
      :)

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